Mortes: Defendeu presos políticos e fundou comitê pela Anistia

Advogada, Eny Raimundo Moreira foi figura histórica na resistência à ditadura militar

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São Paulo

Entre 1964 e 1979, a advogada Eny Raimundo Moreira realizou um trabalho silencioso fundamental para o combate aos abusos praticados contra presos políticos: aproveitou a permissão legal para estudar processos e fez cópias de documentos que tramitavam no Superior Tribunal Militar.

Dessa forma, ela ajudou a alimentar dossiês sobre a repressão durante a ditadura militar (1964-1985).

Essa atuação foi importante para a realização do projeto "Brasil: Nunca Mais", organizado clandestinamente no final da ditadura pelos religiosos dom Paulo Evaristo Arns, rabino Henry Sobel e pastor presbiteriano Jaime Wright para documentar a tortura no período.

Mulher de óculos e brinco de argola faz gestos enquanto fala
A advogada Eny Raimundo Moreira em depoimento à Comissão Nacional da Verdade - Comissão Nacional da Verdade

O projeto teve a advogada como uma das líderes, ao lado de outros defensores dos direitos humanos.

Eny foi também fundadora do Comitê Brasileiro pela Anistia, organização criada por advogados, familiares e amigos para defender a anistia ampla aos presos políticos a partir de 1964.

Em 2012, em depoimento à Comissão da Verdade, ela voltou a fazer história ao relatar o momento em que viu o corpo da militante Aurora Maria Nascimento Furtado, morta em novembro de 1972, após ter sido presa e torturada. Na época, a versão oficial era de que a militante havia morrido baleada durante tentativa de fuga.

O vídeo com o depoimento emocionado de Eny sobre Aurora voltou a circular nesta terça-feira (4) nas redes sociais, como uma espécie de homenagem à advogada, que morreu aos 75 anos, no Instituto do Coração, em São Paulo.

"Era uma menina. Tinha 26 anos. Ela estava com um olho para fora do corpo e o outro completamente preto. O maxilar afundado. Não tinha mais os bicos dos seios e as unhas. Eu passei a mão no rosto dela, como quem faz um carinho em uma criança. Quando passei a mão, meu dedo afundou. A Aurora tinha um pano branco bem simples cobrindo seu corpo. Então nós colocamos várias flores para que os pais dela não vissem as feridas quando ela chegasse a SP", relembrou a advogada no depoimento.

Ela atuou também no caso da professora universitária Isis Dias de Oliveira, cujo desaparecimento em 1972 mobilizou a família em buscas sem resultado.

"Sua partida toca o coração de todos aqueles que defendem os ideais de justiça e liberdade", disse o advogado Luciano Bandeira, presidente da seccional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) no Rio de Janeiro sobre a morte de Eny.

Nascida em Juiz de Fora (MG), ela trabalhou com Sobral Pinto, também advogado de presos políticos. Era um sonho da juventude. Após ler reportagem sobre o jurista lendário, Eny decidiu mudar para o Rio de Janeiro e abordou Sobral no final de uma missa católica.

"Eu quero muito ser uma boa advogada e quero trabalhar com o senhor. Posso? Ele botou o olho no meu olho, parecia uma eternidade, me olhou profundamente e disse: começa amanhã", ela contou no livro "Advocacia em tempos difíceis: Ditadura Militar 1964-1985".

Sobral Pinto gostou do jeito abusado da então estudante, que entrou no escritório como estagiária e ali ficou durante 15 anos.

No livro, Eny descreve o escritório como efervescente. "De manhã e à noite tinha fila de perseguidos que desciam pela escada e chegavam à rua".

Após a anistia, a advogada abriu o próprio escritório e passou a dedicar-se à área de direitos autorais. Defendeu nomes como o cantor e compositor Gilberto Gil e a diretora e roteirista Janaina Diniz Guerra, filha de Leila Diniz.

"Era uma pessoa maravilhosa, sensível e incansável na defesa dos direitos humanos", disse Luciana Boiteux, professora de direito penal e criminologia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Em texto, frei Betto lembrou o dia em que Eny foi visitar ele e mais cinco presos políticos detidos em uma penitenciária comum em plena noite de Natal, em 1972.

Convidada a falar após a missa no local, ela "desceu do palanque-altar e, durante duas horas, sob um silêncio clamoroso, enquanto a banda de presidiários tocava as peças finais, ela caminhou lentamente entre aqueles homens uniformizados, enfileirados nos bancos, e abraçou e beijou cada um daqueles quatrocentos homens", relatou.

"Choravam convulsivamente. Corações de pedra transmutavam-se em corações de carne, como reza a Bíblia."

"Sua passagem nos entristece, mas sua memória será fonte de inspiração para gerações de advogadas e advogados que, como ela, compreenderão a verdadeira dimensão das liberdades e a importância da luta", afirmou em nota Nilo Batista, presidente do Instituto Carioca de Criminologia.

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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