Conheça o cacique Raoni, símbolo da resistência dos povos originários do Brasil

No dia 1°, ele entregou a faixa presidencial a Lula durante a cerimônia de posse

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São Paulo

Raoni Metuktire, cacique dos caiapós —povo que vive ao longo do curso superior dos rios Iriri, Bacajá, Fresco e de outros afluentes do rio Xingu, nos estados do Pará e Mato Grosso— é o indígena brasileiro mais conhecido no mundo.

O ativista, que já teve seu nome cotado para receber o Nobel da Paz, voltou aos holofotes no último domingo (1°) após ser um dos representantes do povo brasileiro a entregar a faixa presidencial a Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante a cerimônia de posse.

A presença dele gerou questionamentos nas redes sociais sobre a origem, importância e ornamentação que ele usa.

O cacique Raoni Metkerie na aldeia Piaraçu, em Mato Grosso, em janeiro de 2020 - Carl de Souza - 24.mai.20/AFP

Liderança de importante atuação na luta pela preservação da Amazônia e dos povos originários, ele é antecessor de figuras de destaque mais recentes como Sônia Guajajara, ministra dos Povos Originários, e Txaí Suruí, coordenadora do Movimento da Juventude Indígena, Raoni também foi influente na formulação da Constituinte de 1988, ao lado de Ailton Krenak e outros, que acabou por consagrar o direito originário dos povos indígenas a suas terras ancestrais.

Naquela mesma década, ganhou projeção internacional a partir para um périplo junto ao músico britânico Sting por diversos países.

Raoni não é precisamente o nome de batismo. Seu verdadeiro nome é Ropni (que significa onça). Já o nome de sua tribo, caiapó, foi pejorativamente dado por outros povos. O termo significa semelhante a macaco. Ropni pertence aos Mebêngôkre do grupo Metyktire.

Foi como Raoni Metuktire que ele ganhou notoriedade. Sua imagem marcante é com o cocar amarelo e o protuberante botoque no lábio inferior.

Na cultura caiapó, o artefato, carregado por Raoni desde os 15 anos, "é utilizado com a crença de fortalecer a capacidade da oratória", diz Emerson Souza, do povo guarani, mestre e pesquisador em antropologia social pela USP (Universidade de São Paulo).

"O botoque representa a mobilização da comunidade indígena por meio da voz", continua Souza. "Ele é utilizado por Raoni de uma maneira brilhante, é sua marca, um objeto que carrega significado e abre as portas do mundo para os povos originários, tendo o cacique como instrumento."

O adereço utilizado pelo caiapó atualmente tem o tamanho aproximado de um CD ou da palma de uma mão. Ter um botoque grande como o de Raoni é um sinal de prestígio e de capacidade de oratória.

Logo ao nascer, fura-se a pele abaixo do lábio dos meninos Mebêngôkre, como se faz comumente com piercings. Na tradição, há uma distinção de gênero para o adorno: meninos e meninas têm os ouvidos furados, o que se refere à audição e às capacidades de aprendizado, mas apenas os meninos têm o lábio perfurado.

"A diferença que se vê atualmente é que Raoni é um dos últimos a manter o uso do botoque, hábito que os Mebêngôkre foram levados a abandonar no violento processo de colonização e de contato pelo Estado", diz a antropóloga Clarice Cohn, professora da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) que trabalha com os Mebêngôkre da terra indígena Trincheira-Bacajá há 30 anos.

Os botoques são retirados apenas no banho, para higiene pessoal. Ele vai sendo aumentado gradativamente, como os alargadores feitos por estúdios de piercing. O aumento do tamanho do adorno requer atenção com a cicatrização e é feito de forma cuidadosa e gradativa

O cacique tem por volta de 90 anos. Ele nasceu na aldeia Kapôt Nhinore, no nordeste do Mato Grosso, entre 1930 e 1932. Na época, sua tribo ainda não tinha contato com outras etnias. A primeira interação ocorreu com os irmãos Cláudio, Orlando e Leonardo Villas-Bôas, em 1954.

Nas décadas de 1940 e 1950, os sertanistas tentavam proteger as populações indígenas durante a ocupação do Brasil Central. Em 1961, criou-se o Parque do Xingu para abrigar várias etnias, inclusive a caiapó.

A partir daí, grupos da etnia passaram a reivindicar a posse de seus territórios tradicionais fora do parque, entre Pará e Mato Grosso. Raoni destacou-se como liderança combativa, mas disposta a negociar. Ele chegou a se encontrar com o presidente Juscelino Kubitschek e o rei Leopoldo 3º da Bélgica.

O cacique foi retratado no documentário "Raoni", que fez sucesso no Festival de Cannes em 1977, após conhecer o cineasta Jean-Pierre Dutilleux. Foi o belga que o apresentou, anos depois, ao músico Sting.

Em 1984, no que episódio que ficou conhecido como Guerra no Xingu, os índios caiapó bloquearam a rodovia BR-080, que cortava o parque, e tomaram funcionários da fundação como reféns por cinco semanas.

A revolta teve início após o então presidente da Funai, Otávio Ferreira Lima, faltar a uma reunião sobre a demarcação de terras na aldeia Kretire. Os indígenas só cederam quando o ministro do Interior à época, Mário Andreazza, aceitou se reunir com eles.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o cacique Raoni durante a cerimônia de posse do dia 1° de janeiro - Sergio Lima/AFP

Durante o governo de Jair Bolsonaro, o cacique tornou-se alvo de críticas do presidente. Em julho de 2019, Bolsonaro disse que não reconhecia Raoni como uma autoridade no Brasil. "Ele é um cidadão, como outro qualquer que nós devemos respeito e consideração. Mas ele não é autoridade."

Em seu primeiro discurso na Assembleia Geral da ONU, também em 2019, o presidente subiu o tom contra o líder indígena. "Muitas vezes alguns desses líderes, como o cacique Raoni, são usados como peças de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia", disse o ex-presidente.

Em resposta, Raoni disse que Bolsonaro "não tem coração bom" e que o presidente é que "não é liderança e tem que sair [do governo]".

 Colaborou Tulio Kruse

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