'Aquilo me fez parecer um escravo de um senhor de engenho', diz entregador agredido no Rio

OUTRO LADO: Defesa de Sandra Mathias diz que caso está sob sigilo e, por isso, ela não pode se pronunciar; à polícia, ela negou racismo

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Rio de Janeiro

Ao lembrar da guia de um cachorro sendo lançada em suas costas pelas mãos de uma mulher branca, o entregador Max Angelo dos Santos, 36, diz que se sentiu como um negro escravizado. Em uma dolorosa viagem no tempo, ele associa a agressão que sofreu da ex-jogadora de vôlei Sandra Mathias, 53, às cenas retratadas nos livros de História sobre a escravidão no Brasil, um dos últimos países a abolir o regime escravocrata, em 1888.

À Folha Max disse que nunca havia passado por nada parecido. "Aquela situação me fez parecer um escravizado, como naquelas cenas em que os senhores de engenho chicoteavam os negros por nada, castigavam apenas por se sentir superiores. Foi assim que eu me senti, humilhado, como nunca antes", afirmou ao relembrar o episódio que viveu no último dia 9, em São Conrado, na zona sul do Rio.

Morador da Rocinha, Max Angelo, 36, tenta retomar a vida depois de ter sido agredido no último dia 9 - Tércio Teixeira/Folhapress

Sandra Mathias responde por lesão corporal e injúria. A defesa da ex-atleta tem dito que não pode comentar o caso porque as investigações estariam sob sigilo, o que não é confirmado pela polícia. Em depoimento, no dia 17 de abril, ela afirmou ter utilizado a guia do cachorro contra o entregador após ter sido vítima de homofobia, e negou as acusações de racismo contra ele.

Max nega a versão da mulher. "Para ela [Sandra] me acusar, ela precisa provar. Assim como eu provei, com imagens, as agressões dela contra mim. Eu nunca fui e nunca serei homofóbico", disse o entregador.

Para Max, a agressão ocorreu por ele ser negro e morar em comunidade. "Ela me chamou de marginal, preto favelado e disse que eu não deveria estar ali, em São Conrado. E que poderia me xingar e fazer qualquer coisa porque não daria em nada. Ela sabia muito bem o que estava fazendo e com quem", afirmou.

Imagens registraram a agressão. No vídeo, é possível ver quando Sandra pega a guia de um cachorro e avança para cima de Max, atingindo-o nas costas. O entregador não reage. "Quem me conhece sabe que sou muito calmo, então mantive o controle, mas eu também sabia que ela podia usar qualquer coisa contra mim", disse Max.

No depoimento, a ex-atleta confirmou que a confusão começou no dia 4 de abril, quando Max passou perto dela na calçada onde os entregadores se reúnem. O ponto fica ao lado do prédio onde ela mora.

Cinco dias depois, em outra briga, ela foi filmada atacando Max com a guia do cachorro e mordendo a perna de uma entregadora identificada como Viviane Maria de Souza. Sandra alegou que Max a segurou com força no momento em que ela estava discutindo com Viviane. O caso é investigado pela 15ª delegacia, na Gávea.

Aquela situação me fez parecer um escravizado, como naquelas cenas em que os senhores de engenho chicoteavam os negros por nada

Max Angelo dos Santos, 36

entregador agredido

Sandra é nutricionista e dona de uma escola de vôlei de praia no Leblon. Segundo a polícia, ela já tem passagens por ameaça, agressão e fraude em licitação. No último dia 19, a ex-atleta foi indiciada por maus-tratos e lesão corporal contra a própria mãe. Os fatos ocorreram em novembro do ano passado.

Vida nova

Morador da Rocinha, Max Angelo interrompeu os estudos no sexto ano do ensino fundamental, aos 11 anos, para trabalhar. Já foi cobrador de van, porteiro, garçom, ajudante de cozinha, entre tantas outras funções, para ajudar a pagar as contas da casa que dividia com a mãe e cinco irmãos.

Casado e com três filhos, Max passou a sustentar a família como trabalhador informal há um ano e meio, desde que perdeu o emprego de carteira assinada. Para fazer as entregas, ele usava uma bicicleta e chegava a pedalar até 18h por dia.

Mas eu não tenho mágoa por ela [Sandra] ter feito o que fez comigo. Só espero que a Justiça seja feita, e que casos como esse não se repitam

Max Angelo dos Santos, 36

entregador agredido

Mas, após a repercussão do caso, Max recebeu algumas ofertas de trabalho. Nesta segunda-feira (24), ele começou em um novo emprego, de carteira assinada, numa agência de publicidade. "À princípio, vou ajudar na parte interna da empresa, lidando com compras e entregas, ainda estamos acertando tudo", contou.

Disse ainda estar animado para voltar a estudar após ganhar uma bolsa integral para cursar Direito em uma universidade particular no Rio. "Vou retomar de onde parei com os estudos e aproveitar essa oportunidade", disse.

Max, que mora de aluguel, pretende comprar uma casa com o dinheiro arrecadado por meio de uma vaquinha virtual que foi criada para ajudá-lo. A iniciativa superou a meta, que era conseguir R$ 190 mil, em apenas 48 horas. Com o valor, ele disse que também quer comprar uma casa para a mãe.

Max Angelo começou em novo emprego, com carteira assinada, numa agência de publicidade e ganhou bolsa para estudar Direito nesta segunda-feira (24). - Tércio Teixeira/Folhapress

Na tentativa de retomar a vida após o episódio que marcou sua história, Max disse que busca não se prender às agressões que sofreu. "É uma coisa que não dá para apagar. Ainda vêm flashes do que aconteceu na minha cabeça. Mas eu não tenho mágoa por ela [Sandra] ter feito o que fez comigo. Só espero que a Justiça seja feita, e que casos como esse não se repitam", afirmou.

Ele disse ainda que os três filhos de 13, 12 e 7 anos, assistiram às imagens da agressão que sofreu. "Eles ficaram muito tristes. Mas aproveitei para explicar a importância de denunciar e de não abaixar a cabeça. Quando resolvi cobrar Justiça pelo que aconteceu comigo, eu não pensei só em mim. Fui representando os meus filhos e todos os negros, pobres, de comunidade".

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