Redes sociais fazem o que querem e precisam ser responsabilizadas, diz especialista do governo

Para coordenadora do Ministério da Justiça, plataformas precisam fazer mais do que apenas moderar conteúdo que estimula ataque às escolas

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Brasília

As redes sociais não barraram a disseminação de conteúdo golpista nos atos de 8 de janeiro e precisam ser responsabilizadas financeiramente para mudar um modelo de negócios que, hoje, gera prejuízo para a sociedade, defende a coordenadora de direitos digitais do Ministério da Justiça e Segurança Pública, a advogada Estela Aranha.

Responsável na pasta pelo debate sobre regulação das big techs, ela argumenta que a punição é necessária para desestimular a máquina de fake news e ódio encontrada em algumas plataformas.

Estela Aranha fala ao microfone em coletiva de imprensa
Coordenadora de Direitos Digitais do Ministério da Justiça e Segurança Pública e responsável pela pasta pelo debate sobre regulação das big techs, a advogada Estela Aranha - TOM COSTA / MJSP

"Você tem uma máquina que vai reproduzindo e que premia conteúdos falsos, sensacionalistas e extremistas. E explorando dados pessoais", critica. "Você sabe onde a pessoa vai engajar, então você propositalmente entrega aquele conteúdo porque sabe que ela vai engajar."

A responsabilização está no substitutivo ao projeto de fake news elaborado pelo deputado Orlando Silva (PC do B-SP). A expectativa é que o texto seja votado na próxima semana na Câmara dos Deputados.

Está sendo pensando algo específico para o dia 20 e os ataques nas escolas? Temos uma mobilização 24 por 7. O Brasil é gigante e, obviamente, a gente não consegue estar no país todo e olhar tudo que está acontecendo, mas dentro do que é possível, nós estamos com a maior equipe. As polícias civis dos estados estão superatentas e trabalhando muito, as guardas municipais. Essa operação mostrou o pacto federativo funcionando. Ninguém tem controle de tudo, mas a gente está fazendo um máximo esforço. Mas obviamente a gente precisa da colaboração das famílias, de todo mundo.

Tem algo que já entrou no radar de vocês? A operação geralmente surge porque tem ameaças e elas se concentravam numa data. Tudo que tinha no nosso radar a gente agiu prontamente.

Qual a importância da regulação das redes hoje? A gente teve um modelo mundial nos últimos anos, não só no Brasil, de abstenção regulatória que, de modo geral, trouxe grandes problemas. É um mercado superconcentrado, na mão de grandes corporações. A gente delega decisões que interferem nos direitos fundamentais, como na própria liberdade de expressão, para essas empresas sem nenhum controle de jurisdições nacionais.

Grande parte da arena pública hoje se dá dentro dessas redes sociais, e elas estão mudando o discurso público e interferem em temas como a própria democracia.

É um debate que tende a trazer visões extremadas.

Como dá para levar a discussão sobre liberdade de expressão para um lado mais racional, sem extremismos? O peso que as plataformas dão para um direito humano ou outro é o peso que atende aos interesses econômicos deles. Eles fazem moderação, a expressão não é livre nas plataformas. Mas de acordo com interesses econômicos. Direitos autorais, por exemplo, você tem regras super-rígidas. Por quê? Porque ações na Justiça de danos ou de recompensa são aquelas ações que mais pesam no bolso. Então isso tem um controle. O resto, não tem. A gente sabe que tudo é moldado também por interesses econômicos ou para você ficar mais tempo na rede. Então há aquela coisa de influenciar comportamentos mais sensacionalistas, que geram mais emoções. Obviamente, a gente está falando também do discurso de ódio, que mexe com emoções para você ficar mais engajado nas redes.

As redes têm responsabilidade nos ataques de 8 de janeiro e nas ações em escolas? Ninguém está falando que as redes são as únicas responsáveis. Obviamente, não. Mas a gente olha as redes como um dínamo. E aí, desde que você está fazendo um debate de polarização política, tem alguns autores que identificam uma infraestrutura sociotécnica, que são as redes sociais.

Nós temos sociedades, países e cenários culturais e econômicos absolutamente diferentes no mundo que poderiam trazer movimentos e reações políticas, sociais e econômicas completamente diferentes. E elas meio que caminham mais ou menos do mesmo modo, porque tem uma infraestrutura sociotécnica que amplifica de alguma forma isso.

Isso significa que essa infraestrutura tem um papel importante nisso. A gente tem que ir a fundo, esses problemas mais estruturais do modelo de negócio, de usar dados pessoais para influenciar comportamento e de usar algoritmos para reforçar mensagens.

Pode ser que o objetivo dele seja que você fique mais tempo na rede, mas você está passando mensagens com conteúdos mais agressivos ou que engajam mais. Então todo esse modelo cria uma situação que a gente vê agora. A gente tinha pesquisas que diziam que 40% da população não acreditava no resultado das eleições. Criou-se um sistema que levou as pessoas a se desconectarem da realidade. E aí elas acham que estão absolutamente no direito delas de irem lá e tomar os palácios.

O próprio dia 8, nos dias prévios, se você está convocando a população para fazer atos de violência contra os Poderes constituídos, teria também que ter uma moderação. E as redes não fizeram a moderação naquele dia.

Você está vendo isso também agora após o ataque às escolas? Depois que nós chamamos para reunião, a moderação começou a ser mais criteriosa. Estão em geral derrubando [as postagens].

Mas se o cerne do seu negócio é gerar esse tipo de conteúdo, você acaba enxugando gelo. Não estou dizendo que a moderação não é importante, ela é central. Teve um impacto muito grande elas terem entrado com tudo na moderação. Mas você está falando de um modelo. Como as redes funcionam hoje gera riscos sistêmicos, de ataque à democracia.

Aí obviamente você tem redes e redes. O Twitter acabou com toda a sua estrutura de moderação. Eles estão colaborando no caso das escolas, mas a rede está sem nenhuma moderação no resto.

Você tem uma máquina que vai reproduzindo e que premia conteúdos falsos, sensacionalistas e extremistas. E explorando dados pessoais. Você sabe onde a pessoa vai engajar, então você propositalmente entrega aquele conteúdo porque sabe que ela vai engajar.

Eu não acho que alguém possa olhar isso e achar absolutamente natural, tranquilo, que os riscos são os riscos normais de qualquer atividade econômica. Elas estão gerando riscos enormes para a sociedade. Quando o seu negócio gera externalidades negativas, você tem que arcar com os custos dele, e não a sociedade.

Aumentar a responsabilidade da plataforma sobre o que nela circula é o melhor caminho? O modelo delas é assim porque elas têm estímulos econômicos para que seja assim. A gente precisa inverter esse estímulo econômico para que ela fale: ‘bom, mas aí eu vou ter um prejuízo, porque eu posso ser responsabilizado civilmente, receber processos.’ Eu não tenho estímulo econômico para continuar o meu negócio sendo uma máquina de fake news e ódio. Todas as atividades econômicas têm que ser responsáveis pelos danos que elas causam.

Uma corrente no Congresso é contra votar o projeto em meio à comoção causada pelos ataques às escolas. A senhora concorda? Teve esse acontecido, mas vai ter outro e outro. Não regular as redes vai trazer uma espiral de instabilidades. A gente teve um problema grave nas eleições, a gente teve um problema das instituições democráticas no dia 8, agora a gente está tendo esse. A gente está vivendo de crises em crises de risco sistêmico. Se a gente não parar e falar, ‘olha a gente precisa urgentemente ter alguma coisa para trabalhar essas redes’, e o estímulo econômico para você virar a chave é uma dessas coisas, a gente vai viver em crises.


Estela Aranha, 46

Graduada em direito pela Universidade de São Paulo, é assessora-especial do ministro Flávio Dino e coordenadora de direitos digitais do Ministério da Justiça e Segurança Pública. É advogada há 20 anos, com atuação profissional em direito público, regulação, tecnologia, privacidade e proteção de dados.

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