Descrição de chapéu

Violência sexual não é brincadeira

Corpo da criança não é público, não importa se estamos falando de um líder religioso supostamente isento de malícia

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Ana Claudia Cifali

Doutora em ciências criminais (PUC-RS), é coordenadora jurídica do Instituto Alana

Mariana Zan

É advogada do Instituto Alana

A cena do líder religioso, dalai-lama, dando um beijo na boca de um garoto e pedindo para que ele chupasse sua língua, durante uma audiência, veio à tona nesta semana. Na ocasião, o público presente riu. Após a viralização e repercussão negativa do vídeo, foi postado nas redes sociais de dalai-lama: "Sua Santidade costuma brincar com pessoas que conhece de maneira inocente, mesmo em público e diante das câmeras. Ele lamenta esse incidente".

Uma cena que poderia ser vista pelas lentes da brincadeira e da ausência de malícia de um líder religioso, na realidade, evidencia a naturalização de abusos e violências contra crianças e adolescentes, seja em espaços privados ou em ambientes públicos.

Em uma sociedade que constantemente ataca, violenta e assedia crianças e adolescentes, a justificativa de ter sido uma brincadeira inocente é comum e insistentemente utilizada. Porém, o que o episódio reforça é a necessidade de se pautar o debate a partir de um olhar crítico para as micro e macroviolências cometidas diariamente contra crianças e adolescentes em todo o mundo.

Homem de óculos mostra a língua diante de criança
Dalai-lama se desculpou depois que uma filmagem o mostrou perguntando a um menino se ele queria 'chupar' a língua do líder espiritual tibetano - Reprodução

Segundo o Relatório do Status Global sobre Prevenção da Violência contra Crianças 2020, documento mais recente sobre o cenário mundial de violências contra crianças e adolescentes, 1 a cada 2 crianças ou adolescentes sofre alguma forma de violência anualmente, o que significa que cerca de 1 bilhão de crianças são vítimas de violência todos os anos.

Em todo o mundo, cerca de 300 milhões de crianças de 2 a 4 anos sofrem regularmente violências por parte de seus cuidadores. Um terço dos estudantes de 11 a 15 anos de idade tem sido vítima de bullying pelos seus colegas e estima-se que 120 milhões de meninas e jovens tenham sofrido alguma violência sexual antes dos 20 anos de idade. A violência psicológica afeta 1 em cada 3 crianças.

Ainda que esses dados não indiquem marcadores sociais específicos, tais como gênero, raça, etnia e território —questões que atravessam as diferentes experiências de crianças e adolescentes—, os números auxiliam a compor um retrato da naturalização das violências contra esse público, evidenciando que ser criança e adolescente neste mundo significa ser uma potencial vítima de abusos e violências.

O corpo da criança não é público, não importa se estamos falando de um líder religioso supostamente isento de malícia —aliás, como é costume ser alegado nas inúmeras histórias de abusos sexuais praticadas por líderes e gurus no mundo todo.

Esse é um artifício poderoso e perverso para deslegitimar e pôr em xeque os sentimentos e as palavras das vítimas. Nesse caso, além da desigualdade de poder existente nas relações entre crianças e adultos, soma-se o fato de estar-se diante de um líder religioso, o que aumenta ainda mais a vulnerabilidade da criança. Não podemos mais aceitar a naturalização da violência sob o manto da inocência, da falta de malícia, da diversão e da brincadeira.

Importante destacar que o processo de naturalização de violências contra crianças e adolescentes, para além de uma violência em si, faz com que os abusos cometidos sem violência física sejam muitas vezes tolerados. Enfrentar e transformar esse problema passa por uma profunda mudança cultural, e todos somos responsáveis por essa mudança. Por essa razão, não se pode excluir desse debate as escolas, os grupos religiosos, as famílias e a sociedade como um todo.

Trata-se de não obrigar a criança a beijar, abraçar ou sentar no colo de quem ela não quiser, em nome de uma suposta educação. Trata-se de respeitar os limites impostos por elas e de escutar sua linguagem corporal. Trata-se de ensiná-las a se proteger e a pedir ajuda quando se sentirem ameaçadas e desconfortáveis em qualquer situação. Em suma, trata-se de considerá-las enquanto sujeitos de direitos, e não objetos à disposição dos adultos e da diversão alheia.

Abuso é abuso. Violência sexual não é brincadeira e pode ocorrer no ambiente doméstico ou em público, inclusive com uma plateia para aplaudir e dar risada. Pode ser perpetrada por conhecidos, desconhecidos, líderes religiosos, políticos, acadêmicos e artistas. E não pode nem deve ser tolerada por nenhum e nenhuma de nós.

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