Atendimentos a mulheres vítimas de violência doméstica aumentam em SP

Centros que recebem casos e direcionam para abrigos sigilosos têm alta nas demandas desde o início da pandemia

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São Paulo

Ao menos quatro episódios de violência doméstica já haviam ocorrido quando Josi da Silva Souza, 44, conseguiu impor a separação ao marido com quem estava casada havia 10 anos.

A decisão foi acompanhada do registro de um boletim de ocorrência e de um pedido de medida protetiva que a garantiu distância do agressor. "Ele não queria a separação e falava que não ia sair de casa. Achava que eu blefava", diz ela, separada há três anos.

Ela conta que o fim da relação abusiva foi a conclusão de um processo que teve início durante os atendimentos em um dos centros municipais voltados às mulheres vítimas de agressões. A demanda pelo serviço cresceu 16% nos primeiros quatro meses deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado. "Sabia que estava sofrendo violência porque via a mesma situação em comerciais na televisão, mas não sabia com quem falar", diz.

Retrato de Josi da Silva Souza em pé em frente a um muro
Separada há três anos, Josi da Silva Souza, 44, passou dez anos casada com o marido abusador - Marlene Bergamo/Folhapress

Dados oficiais apontam que a demanda pelo atendimento citado por Josi segue em tendência de alta há dois anos, com ápice em março deste ano quando 218 mulheres buscaram os serviços. Em 2021, a média foi de 83 mulheres atendidas por mês. No ano seguinte, o número subiu para 171. O período coincide com a retomada pós-isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19, quando foi registrado recorde de casos de feminicídio no Brasil, no primeiro semestre de 2022.

A alta persistente da procura pelo serviço de proteção corresponde com o aumento de casos de violência doméstica apontado pelo estado de São Paulo no primeiro trimestre deste ano. No período, foram registrados 62 casos de feminicídio –número recorde–, uma alta de 24% em relação ao mesmo período de 2022, que teve 50 mortes.

Para Leticia Andrade, gerente do Centro de Defesa e de Convivência da Mulher Casa de Isabel, o aumento de busca por ajuda traduz a demanda reprimida durante a pandemia em que os atendimentos eram remotos e as vítimas eram obrigadas a conviver com os agressores dentro de casa. Ela conta que, atualmente, cerca de oito mulheres são encaminhadas para abrigos sigilosos por mês.

Esses centros funcionam em esquema de portas abertas em que a mulher é atendida assim que chega, passa por uma triagem e é encaminhada para acompanhamento jurídico, psicológico e de assistência social. Em caso extremo de perigo iminente, a vítima vai para um abrigo fora da área onde o agressor mora e trabalha, muitas vezes, apenas com a roupa do corpo. A maior parte dos atendimentos inclui acompanhamento psicológico, social e jurídico.

Além dos casos de agressão física em que a vítima aparece machucada em serviços de emergência, há muitas que chegam ao serviço após procurarem assistentes sociais para tratar de assuntos relacionados ao pagamento de benefícios sociais, como o Bolsa Família. "A situação fica evidente quando a mulher pede para retirar o nome do marido do cadastro porque ele a impede de ter acesso ao dinheiro", diz a gerente da Casa de Isabel.

Nesse caso, é caracterizada a violência financeira, uma das muitas modalidades de agressões domésticas que incluem xingamentos e abusos psicológicos. "A violência doméstica é tão naturalizada que as mulheres têm dificuldade em se reconhecer como vítimas e procurar ajuda", diz a gerente.

Ela relata que séries de televisão e filmes que tratam do assunto têm grande impacto e fazem aumentar a procura pelos centros de atendimento. Segundo a gerente, isso aconteceu no fim de 2021, quando foi exibida a minissérie "Maid" na Netflix, que conta a história de uma jovem mãe que decide deixar o namorado após sofrer uma série de episódios violentos. "Mais mulheres nos procuraram após assistirem."

A terapeuta holística Angélica Lima da Silva, 38, lembra que se deu conta da violência doméstica sofrida quando o ex-marido arrancou o portão de casa para comprar cigarros. Desempregado, ele dependia do dinheiro que ela levava para casa.

"Passei por todos os tipos de violência porque a gente normaliza as ofensas e a violência psicológica. Ele me julgava o tempo todo e já me chamou de prostituta, de advogada do demônio", diz.

O fim do casamento de 15 anos e das agressões ocorreu há três anos. "Um dia cheguei do trabalho e ele não estava mais lá, tinha ido para a casa da mãe no interior", conta a terapeuta. "Foi algo libertador porque eu não sabia mais quem eu era, é uma situação que vai matando a gente por dentro. É bem sutil e silencioso, vai te minando por dentro", diz ela, que pretende escrever um livro sobre sua experiência.

Em comum, as duas mulheres relatam que seus trabalhos eram a principal fonte de renda da casa e, mesmo assim, a dependência emocional as impediram de consumar a separação. Josi lembra que costumava dar dinheiro para o marido pagar contas em bares e restaurantes para fazê-lo se sentir melhor.

Hoje, ela comemora o início da graduação em nutrição. "Quando era casada, quis fazer faculdade, mas meu marido reclamou que não iria cuidar do nosso filho, que era pequeno, e eu desisti", conta. "Enquanto isso, ele ia para o boteco jogar baralho para espairecer, mas eu não podia fazer o mesmo", continua.

Com a paz e segurança reconquistada, Josi e Angélica contam que ainda não conseguiram iniciar um novo relacionamento. "Eu me permiti conhecer outra pessoa, mas sempre penso que pode acontecer de novo", diz Angélica.

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