Descrição de chapéu violência Consciência Negra

George Floyd, Adama e Marielle Franco ainda vão mudar algo no futuro, diz ativista francesa

Irmão de Assa Traoré foi morto sob custódia em 2016, na França; desde então ela denuncia a violência policial

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Rio de Janeiro

Quando o irmão de Assa Traoré foi morto sob custódia da polícia francesa, sete anos atrás, ela deixou de ser educadora para se tornar uma das principais ativistas da França contra a violência policial. Desde então, tornou-se uma pessoa pública e passou a ser ela mesma o alvo de novos ataques.

"Para mim, o Estado é o principal responsável [por esses ataques], porque deixa isso acontecer", disse Assa em entrevista à Folha. "O Estado vê quando você recebe ameaças de morte. São ameaças feitas de forma pública. Ele deveria condená-las, mas isso não é feito."

Adama Traoré, irmão de Assa, foi morto em 19 de julho de 2016, mesmo dia em que completou 24 anos. Francês de origem malinesa, ele morreu após ser detido pela polícia em Beaumont-sur-Oise, cidade 30 km ao norte de Paris.

Assa Traoré se tornou ativista depois que o irmão foi morto sob custódia da polícia da França, em 2016 - Eduardo Anizelli/Folhapress

O jovem havia saído para andar de bicicleta e estava sem sua carteira de identidade. Ele foi abordado por três agentes, que o pressionaram contra o chão para imobilizá-lo. Em depoimento, um dos policiais admitiu que ele e seus colegas ficaram em cima do jovem ao mesmo tempo, asfixiando-o. Adama chegou inconsciente à delegacia. Horas mais tarde, foi declarado morto.

O caso fez com que Assa largasse o emprego que tinha na época para se dedicar à luta por justiça pelo irmão e pelo fim da violência policial. Em 2020, ela foi escolhida pela revista americana Time como "guardiã do ano", título anual dado para pessoas que fizeram contribuições significativas à sociedade.

Por outro lado, ter se tornado o principal rosto da luta contra o racismo na França rendeu a Assa ameaças de morte e um pedido formal da ONU para que o governo francês garantisse sua segurança.

Na conversa com a Folha a ativista traçou um paralelo entre sua história e a da vereadora Marielle Franco, assassinada a tiros em março de 2018, no Rio de Janeiro. Segundo Assa, o fato de ambas serem pessoas públicas não intimidou a ação de agressores. No caso da brasileira, diz Assa, também não a impediu de ser morta.

Para Assa, o Estado tem parcela de culpa por não atuar de forma ativa contra a violência sofrida por defensores dos direitos humanos. "Marielle Franco foi morta. Eu recebo ameaças de morte. Essas violências são autorizadas pelo Estado, não aparecem da noite para o dia. São assédios, ameaças e agressões que acontecem de forma pública", diz.

"Nós só pedimos para viver em um mundo livre, não estamos pedindo muito. Hoje temos que lutar para viver. Quem denunciar [essa situação] pode ser morto. É um risco que corremos".

Símbolos e esperança

Adama morreu em 2016, mas o caso ganhou notoriedade internacional em 2020, quando outro homem negro foi morto pela polícia —desta vez, nos Estados Unidos. Em 25 de maio daquele ano, George Floyd morreu em uma abordagem da polícia, assim como o jovem francês. Um policial branco pisou em seu pescoço e, por nove minutos, o sufocou.

O episódio de violência foi filmado, e a frase dita por Floyd pouco antes de morrer —"eu não consigo respirar"— inspirou diversos protestos ao redor do mundo contra a violência policial. Na França, foi Assa quem liderou as manifestações.

No caso americano, a morte de Floyd resultou na prisão do policial que o asfixiou. Já no episódio francês e no caso de Marielle houve poucos avanços. O inquérito sobre a morte de Adama foi arquivado em julho deste ano —a Promotoria de Paris afirmou que os policiais que detiveram o jovem fizeram uso correto da força. Assa e sua família entraram com recurso contra a decisão. Quanto ao assassinato da vereadora carioca, embora a polícia tenha prendido os autores do crime, os mandantes não foram descobertos.

Mesmo diante desse cenário, Assa diz que se mantém positiva.

"Nos falam que há pessoas morrendo o tempo todo pelo mundo, mas que só falamos de George Floyd. Eu digo a eles que a história da humanidade foi criada a partir de símbolos", afirma a ativista. "George Floyd, Adama e Marielle Franco morreram por todas essas outras pessoas. Isso significa que não devemos nos desesperar, o nome deles mudará algo no futuro. Tenho certeza."

Racismo sistêmico

Apesar de Brasil, França e Estados Unidos terem cenários diferentes quando se trata de letalidade policial, Assa afirma que o pano de fundo para as violências cometidas nos três países é o mesmo: o racismo institucional que data do tempo da escravidão.

No Brasil, segundo o Anuário de Segurança Pública, 6.430 pessoas foram mortas por policiais em 2022. Nos EUA, esse número foi de 1.251, de acordo com a iniciativa Mapping Police Violence ("Mapeando violência policial", em tradução livre). Na França, foram 38 mortos em ações policiais, segundo o Ministério do Interior francês.

"Quando a gente não reconhece essas questões da colonização, a violência policial é legitimada. É como se fosse algo muito normal. Dentro dessa lógica, apenas nós, que denunciamos esse racismo sistêmico, não temos um comportamento normal", afirma Assa.

Como exemplo da lógica colonial presente na violência policial, a ativista cita o exemplo do próprio irmão, que não estava com sua carteira de identidade quando foi morto.

"Na história da escravidão na França, foi criado o primeiro documento oficial para o escravo negro. Então, se um deles saísse na rua sem esse documento, tínhamos o direito de bater nele".

"A carteira de identidade é uma extensão da vida das pessoas não-brancas. Não podemos nos dar ao luxo de não estar com ela. Podemos morrer. Podemos ser atingidos. Podemos acabar sob custódia policial. Isso tudo é um comportamento colonial", diz Assa.

Mas ao falar de racismo e violência, há outro tópico que Assa prefere abordar. É nele que ela faz a principal defesa de seu irmão Adama. A ativista acredita que um dos caminhos para mudar o atual cenário da brutalidade policial é através da humanização de suas vítimas —que são, em maioria, homem jovens e negros.

A ativista franco-malinesa veio ao Rio participar do Festival Mulheres do Mundo - WOW, na Praça Mauá, no centro da cidade. Para Assa, o evento foi uma oportunidade para falar não só da violência policial, mas exaltar aqueles que perderam a vida por ela. Ser, diz ela, "a voz viva dos homens que já não estão mais aqui".

"A sociedade criminalizou estes homens, o fez com que fossem vistos como pessoas raivosas, más, violentas. Então, temos que inverter essa imagem criada e essa criminalização. Temos que contar suas histórias e colocá-los em evidência", afirma.

Assa completa:

"Só falamos de violência, e esse é o sistema que é construído. Cabe a nós desconstruir isso e trazer a humanização ao homem negro. Só nós podemos fazer isso, não são os outros".

Esquerda paternalista

Por fim, Assa falou sobre movimentos de alas da esquerda que se opõem às pautas identitárias. Entre essas correntes, a explicação é de que questões raciais e voltadas a minorias tiram do foco o que deveria ser mais importante, a luta de classes e os direitos dos trabalhadores.

Para Assa, explicar esses movimentos é fácil. Fazem parte de uma ideologia que, sozinha, não representa as verdadeiras demandas da periferia .

"A esquerda não é quem nos representa perfeitamente, a esquerda é muito paternalista.

Ela abafa as vozes da periferia e ainda não entendeu que não pode decidir por nós", afirma.

"A gente vê aqui no Brasil e no restante do mundo que as pessoas estão se organizando. E isso assusta os políticos. E significa que estamos no caminho certo, devemos continuar".

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