Descrição de chapéu Censo 2022 Consciência Negra

Aumento da população preta e parda é resultado de valorização da identidade negra, diz historiadora

Coordenadora de campanha dos anos 1990 aponta que dados do Censo 2022 são resultado a longo prazo de mobilização do movimento negro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rio de Janeiro

Os brasileiros passaram a se reconhecer mais como pardos e pretos, conforme apontam os dados do Censo Demográfico de 2022, divulgados nesta sexta-feira (22). É a primeira vez, na história do recenseamento, que o número da população parda se sobrepõe à população branca. E o motivo para isso, segundo aponta a historiadora Wania Sant’Anna, é o aumento da valorização da identidade negra.

"A população preta e parda passou a ter mais referências positivas da sua identidade étnico-racial. É uma mudança da percepção das pessoas sobre sua origem", diz Sant’Anna, conselheira do CEDRA (Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdade Raciais) e integrante da Coalizão Negra por Direitos.

A campanha do Censo de 1990 que incentivava as pessoas a responderem o questionário com consciência
A campanha "Não deixe sua cor passar em branco", para o Censo de 1991, incentivava as pessoas a responderem o questionário com consciência - Arquivo Pessoal

Ela completa: "Esse aumento é visto em todas as faixas etárias. Se fosse um modismo, talvez nós só víssemos isso acontecer entre os mais novos".

Comparando o Censo de agora com o do passado, o maior aumento da população preta se deu na faixa etária de 30 a 44 anos —em 2010, 8,5% dos brasileiros se declararam da cor; agora, são 11,4%. Já da parda, esse crescimento ocorreu entre pessoas de 45 e 59 anos. Eram 38,3%, e passaram a ser 45,9% do Brasil.

Não dá para dizer que as mesmas pessoas do censo passado começaram a se reconhecer pretos e pardos, pois já se passaram 13 anos e elas, provavelmente, mudaram de faixa etária. Mas é possível afirmar que as pessoas ficaram mais confortáveis em relação à sua identificação.

"É um reflexo dos debates que estamos fazendo sobre os direitos da população negra, contra o racismo e sobre a memória da identidade negra", afirma Sant’Anna.

A historiadora explica que os números do censo são usados para guiar políticas públicas e privadas. Os dados reafirmam uma tendência que já era apontada pela Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), de que os pardos seriam predominantes na população.

A diferença agora é que devido ao censo ouvir os brasileiros de casa em casa, e não ser uma amostragem, os números têm mais credibilidade.

Sant’Anna atribui o aumento da autodeclaração preta e parda ao movimento negro e à campanha feita no início dos anos 1990 para conscientizar sobre a autoidentificação. A historiadora foi a coordenadora da ação cujo mote era: "Não deixe sua cor passar em branco. Responda com bom Censo".

A campanha tinha três objetivos: sensibilizar pessoas de origem africana a declarar sua cor a partir de seu referência étnico; contribuir na construção de indicadores nacionais sobre as condições socioeconômicas da população de origem africana; e veicular uma mensagem positiva da população de origem negra recuperando a autoestima cultural e política.

Segundo Sant’Anna, pesquisas da época mostravam que pessoas negras se identificavam mais com suas origens brancas do que africanas. Isso ocorria porque, até então, o negro era associado a uma imagem negativa e marginalizada. Essa estratégia de "clarear a raça" ao assumir vínculos familiares com brancos, diz a historiadora, era sentida nos resultados do censo.

"Antes da mobilização da primeira campanha ‘Não deixe sua cor passar em branco’, os pretos eram 5,9% do Brasil, os pardos, 38,8%. Nós tínhamos uma maioria branca que somava 54,2%", diz Sant’Anna, citando números do Censo de 1980.

Pesquisador do Insper e colunista da Folha, Michael França endossa o pensamento de Sant'Anna e explica que, pela identidade branca ter referências mais positivas do que a negra, as pessoas da época preferiam se identificar como brancas.

"Havia esse movimento de parte da população negra de se declarar como brancos com o intuito de ascender socialmente, já que a identidade branca era vista com características superiores à identidade negra."

"Se voltarmos lá na década de 1990 e início dos anos 2000", continua ele, "era muito comum mulheres negras alisarem o cabelo. Homens negros, por exemplo, cortavam o cabelo bem baixo nem deixavam o crespo aparecer".

Após a campanha, o Censo de 1991 registrou uma queda nos números de brancos, que foram a 51,6%, e um aumento de pretos e pardos. Respectivamente, 5% e 42,5%.

"Todo esse processo que veio depois dos anos 2000, de maior valorização da identidade negra, reflete tanto na autodeclaração racial como também na forma como as pessoas se expressam", diz França.

A principal imagem da campanha era um cartaz de corpos pardos e pretos, cuja fotografia foi feita por Januário Garcia, com o mote da ação escrito em cima. O uso da palavra "branco" foi cuidadosamente pensado para se tornar o lema da campanha.

"Eu fiz na época uma pesquisa testando em quais momentos a palavra ‘branco’ era tido como algo negativo. E tive dois resultados, ‘deixar passar em branco’ e ‘deixar passar em brancas nuvens’", conta Sant’Anna.

Desde 1991, a população preta vem crescendo de forma gradativa. Já a população parda, teve uma queda entre o censo daquele ano e de 2000, mas voltou a subir em 2010. Já a população branca, que aumentou entre 1991 e o início do milênio, reduziu ao longo dos últimos 20 anos.

"Eu fico muito feliz em ver os dados do Censo 2022. Sabemos que os resultados demográficos vêm em longo prazo. Essa mudança mostra o potencial e onde podemos avançar, não só políticas públicas e privadas, como também na identificação do brasileiro. A população negra é consumidora, é a base da nossa economia. Se não levar essa população em conta, o Brasil quebra", afirma Sant’Anna.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.