Descrição de chapéu Cenários 2024

Tarifa zero se populariza nas cidades, mas financiamento ainda é dúvida

Gratuidade nos ônibus avança pelo Brasil em meio à crise na queda de passageiros desde a pandemia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Vanessa Selicani
São Paulo

Trinta e dois anos separam a primeira tentativa de tarifa zero na cidade de São Paulo da investida iniciada no domingo (17). Em três décadas, o que parecia um devaneio da esquerda ganhou força política após as manifestações de junho de 2013 e beira 2024 abraçada também pela ala da direita.

A proposta surgiu durante a gestão de Luiza Erundina (1989-1993), na época no PT, quando Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, ganhou ônibus gratuitos. Na ocasião, a proposta de levar o serviço para toda a cidade foi ignorada pela Câmara. Em seguida, o município de Conchas (SP), a 179 quilômetros da capital, se firmou em 1992 como o primeiro a adotar catracas livres.

Desde lá, já são 89 cidades com o sistema. O levantamento é da Coalizão Triplo Zero, rede que reúne organizações como Idec (Instituto Brasileiro de Defesa ao Consumidor) e Movimento Passe Livre em prol da mobilidade urbana. O mestre em planejamento urbano e regional pela USP e coordenador na Fundação Rosa Luxemburgo, Daniel Santini é o responsável por acompanhar a evolução. Ele destaca o aumento expressivo de adesão em 2023. Foram ao menos 27 novas cidades, crescimento de 43,5%.

Ônibus exibe informação de tarifa zero aos domingos em São Paulo - Zanone Fraissat - 17.dez.2023/Folhapress

Para o pesquisador, há uma conjuntura econômica e política que deu força à gratuidade. "O sistema de transporte por ônibus se aproxima de um colapso financeiro. O número de passageiros caiu drasticamente durante a pandemia, em 2020, e não conseguiu se recuperar. É um cenário que cresce junto a um momento político em que a tarifa zero é muito atraente. Ela dá votos e isso não pode ser ignorado na análise."

Dados públicos da SPTrans sobre o transporte de passageiros nos ônibus de São Paulo mostram um pico em 2011, com 2,9 bilhões de pessoas. O número se estabiliza até a queda acentuada em 2020, quando passa para 1,5 bilhão. Até novembro deste ano, a rede municipal havia transportado 1,9 bilhão, valor ainda abaixo dos parâmetros pré-pandemia. Levantamento da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos) sobre todo o país mostra que o sistema de ônibus atingiu 85% do que transportava antes de 2020, com prejuízos às empresas na ordem de R$ 36 bilhões.

"O modelo de transporte coletivo baseado na tarifa faliu. As cidades são obrigadas a encontrar outras formas, porque em algumas situações o empresário desistiu do contrato, e a tarifa zero atende melhor os usuários", afirma o coordenador do programa de mobilidade urbana do Idec, Rafael Calabria.

Mas financiar as catracas livres também é um problema de ordem econômica difícil de resolver. Em São Paulo, por exemplo, a estimativa é que o custo alcance R$ 10 bilhões ao ano. A prefeitura já repassa às empresas cerca de R$ 5 bilhões.

A cidade mais populosa com a tarifa zero é Caucaia, no Ceará, com 355 mil habitantes. O custo estimado em R$ 25 milhões ao ano é pago com remanejamento orçamentário. Em Maricá, no Rio de Janeiro, os R$ 12 milhões mensais usados para liberar catracas vêm dos royalties do petróleo. Já Vargem Grande Paulista, na Região Metropolitana de São Paulo, criou um fundo abastecido pelo vale-transporte pago pelas empresas. São Caetano do Sul também usa dinheiro de seu Fundo de Apoio ao Transporte. Mas, no caso da cidade do ABC paulista, o fundo é mantido por receitas de multa e publicidade no transporte.

Autor daquela que é considerada a primeira proposta de tarifa zero no Brasil, o ex-secretário de mobilidade na gestão Erundina, Lúcio Gregori, destaca a importância da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 25/2023 para a gratuidade em nível nacional. "A proposta cria o Sistema Único de Mobilidade, algo parecido com o SUS (Sistema Único de Saúde), e traz nova fonte de financiamento da tarifa zero para União, estados e municípios. Ela apresenta uma contribuição pelo uso do viário em que automóveis pagam de acordo com seu tamanho." A PEC está em análise pelas comissões da Câmara.

Enquanto os modelos de financiamento ainda são estudados, os reflexos da liberação das catracas ficam claros com a adesão de cada vez mais cidades. "O primeiro impacto é um aumento avassalador de passageiros. As pessoas passam a ter acesso livre à cidade. Isso traz desde aumento da atividade econômica no comércio até a redução das faltas nas consultas médicas", afirma Rafael Calabria. O coordenador no Idec pontua que é preciso aumentar a frota para atender a nova demanda.

O presidente da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos), Francisco Christovam, vê com ressalvas a gratuidade. Ele defende que a tarifa deve ser reduzida e paga não apenas pelo passageiro, mas também pelo poder público por meio de subsídio. Mas, para o empresário, liberar as catracas fará a qualidade do serviço cair. "A população não está sendo consultada. O que será que ela prefere? Ônibus de graça e superlotados ou uma tarifa módica e lotação razoável? Nossa preocupação é que a prefeitura remunere de forma justa a quantidade de ônibus necessária para liberar as catracas."

Para a professora da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) e coordenadora do LabCidade, Raquel Rolnik, a discussão precisa ir além de não pagar a tarifa. "Estamos falando na universalização do direito de ir e vir. A discussão é ter sistema de ônibus de qualidade, eficiência e conforto, coisas que não temos hoje pagando tarifa."

Cidades mais populosas que contam com a tarifa zero

Município Estado População Ano de implantação
Caucaia CE 355.679 2021
Luiziânia GO 209.129 2023
Maricá RJ 197.300 2014
Ibirité MG 170.387 2023
São Caetano do Sul SP 165.655 2023
Paranaguá PR 145.829 2022
Balneário Camboriú SC 139.155 2023
Formosa GO 115.669 2021
Ituiutaba MG 102.217 2023
Assis SP 101.409 2021
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.