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Crise Yanomami: por que governo Lula não conseguiu resolver e o que promete agora

Lideranças e especialistas admitem melhora, mas dizem que ação federal foi um 'fracasso'

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Leandro Prazeres
Brasília | BBC News Brasil

"Vamos tomar todas as atitudes para tirar os garimpeiros ilegais e cuidar dos yanomamis."

A frase foi dita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 30 de janeiro de 2023.

Na época, imagens de indígenas yanomami desnutridos e de garimpeiros invadindo suas terras na Amazônia causavam comoção nacional e internacional.

Há um ano, Lula visitou a região e classificou a situação do povo Yanomami como 'desumana' - Ricardo Stuckert/Presidência da República

O governo anunciou então a criação de um comitê de crise e declarou estado de emergência em saúde pública.

Praticamente um ano depois, em janeiro deste ano, Lula voltou a abordar o assunto diante de evidências de que a crise, afinal, não tinha sido debelada como prometido.

"A gente vai decidir tratar a questão de Roraima, a questão indígena, dos yanomami, como uma questão de Estado. A gente vai ter que fazer um esforço ainda maior [...] porque não é possível que a gente possa perder uma guerra para garimpo ilegal", disse o presidente em uma reunião ministerial.

Apesar das repetidas promessas presidenciais, documentos, relatos e imagens vêm apontando que a situação continua alarmante.

Lideranças indígenas ouvidas pela BBC News Brasil usam termos como "fracasso" e "frustração" para definir como percebem o resultado das ações do governo federal.

"Isso, com certeza, foi um fracasso", diz o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, Dario Kopenawa.

Isso porque, conforme apontam estas lideranças e também especialistas, o garimpo ilegal persiste na região e o número de mortes entre os yanomami ainda é elevado.

Os entrevistados reconhecem que houve melhorias em algumas áreas, especialmente na comparação com a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Mas avaliam que houve uma desarticulação de ações do atual governo e que algumas pastas, como o Ministério da Defesa, não teriam atuado de forma satisfatória em áreas como o controle do espaço aéreo e no suporte logístico a ações como a distribuição de cestas básicas aos yanomami.

A Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) disse em nota à BBC News Brasil que o governo federal investiu R$ 1 bilhão em ações voltadas ao povo Yanomami em 2023.

A pasta acrescentou que esse valor deverá subir para R$ 1,2 bilhão em 2024 e que o governo planeja ações "estruturantes" para a crise.

Procurada novamente antes da publicação desta reportagem para se manifestar em relação aos termos usados por lideranças indígenas e especialistas sobre a situação na terra Yanomami, a Secom não se manifestou.

A BBC News Brasil também questionou os ministérios do Meio Ambiente (MMA), da Defesa e da Saúde sobre as alegações feitas pelas lideranças e pelos especialistas.

O MMA não se manifestou sobre as declarações. Os ministérios da Saúde e da Defesa responderam ao pedido sem tratar diretamente das alegações e citaram dados enviados anteriormente sobre as ações executadas pela pasta para lidar com a crise (veja mais detalhes abaixo).

Dados apontam melhora, mas crise persiste

Dados produzidos pelo próprio governo federal dão a dimensão da crise atual no povo Yanomami.

Segundo o Ministério da Saúde, em 2023, foram registradas 308 mortes entre os yanomami. O número é 10% menor do que os 343 óbitos registrados em 2022.

Também de acordo com a Saúde, houve uma queda de 35% no número de crianças yanomami mortas por desnutrição em relação a 2022.

Ainda assim, 29 crianças da etnia morreram por algum tipo de desnutrição em 2023. No ano retrasado, foram 44.

O geógrafo Estevão Senra, pesquisador do Instituto Socioambiental, atua há 10 anos no território Yanomami.

Ele diz que, apesar da queda no número de mortes, as causas dos mais de 300 óbitos de 2023 ainda são relacionadas à falta de assistência.

"Além da quantidade, a gente precisa analisar também quais são as causas dessas mortes. A gente vê que há uma predominância de causas associadas à desassistência. São doenças do aparelho respiratório e doenças infecto-contagiosas que estão levando os yanomami à morte. E são doenças que poderiam ser evitadas", disse Senra à BBC News Brasil.

Em 2023, por exemplo, a BBC News Brasil mostrou que, entre 2019 e 2022, as mortes por desnutrição entre os yanomami subiram 331%.

Agentes do Ibama destróem avião usado por garimpeiros em Roraima - Ibama

Senra aponta que apesar dos esforços anunciados pelo governo, ainda há áreas da Terra Indígena Yanomami que não contam com o atendimento em saúde devido.

"Houve uma recuperação de alguns postos de saúde, mas ainda existe um déficit de recursos humanos para ocupar os postos de saúde e dar a atenção à saúde como poderia ser realizada", diz o especialista.

"Há regiões que são atendidas de maneira esporádica e sem infraestrutura adequada."

A tentativa de melhorar a estrutura de saúde aos yanomami foi um dos pontos mais alardeados pelo governo federal em 2023.

Mas o próprio Ministério da Saúde afirmou, em nota à BBC News Brasil, que não conseguiu instalar todas as bases inicialmente planejadas.

A pasta disse que reabriu sete polos-base de saúde ao longo do ano passado, mas pontuou que a permanência dos garimpeiros na região levou ao fechamento de uma unidade e ao funcionamento parcial de outras três.

"Com a reabertura dos sete polos-base, que estavam fechados por ações criminosas, totalizamos 68 estabelecimentos de saúde com atendimento em terra Yanomami", diz um trecho da nota.

"Um pólo-base, de kayanaú, permanece fechado em decorrência das atividades do garimpo ilegal no local. Outros três funcionam parcialmente, durante o dia, pela insegurança causada pelo garimpo aos profissionais de saúde."

Controle ainda é gargalo

Na repressão ao garimpo ilegal, os dados também apontam para uma melhora na terra indígena, mas lideranças e especialistas denunciam que essa atividade voltou a crescer.

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontam que houve uma queda de 95% na área desmatada na Terra Indígena Yanomami em 2023 na comparação com 2022.

No ano passado, foi desmatado 1,1 quilômetro quadrado dentro da região. Em 2022, foram 22,8 quilômetros quadrados.

Parte desse resultado vem sendo atribuído às operações de combate ao garimpo conduzidas pela Polícia Federal (PF) e pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), vinculado ao MMA.

Segundo a pasta, foram realizadas mais de 300 operações na região desde fevereiro de 2023, que resultaram na destruição ou apreensão de 34 aeronaves supostamente usadas por garimpeiros ilegais.

Apesar disso, lideranças indígenas apontam que houve um retorno gradativo dos garimpeiros à região à medida que agentes do Ibama e da PF foram deslocados da terra Yanomami para outras regiões.

Eles também afirmam que os garimpeiros passaram a adotar novas estratégias, como usar pistas de pouso clandestinas em território venezuelano.

"O garimpo continua. A gente vê os aviões passando sobre nossas aldeias, e não tem controle. O garimpo continua livremente na terra Yanomami", diz Dario Kopenawa.

Especialistas como Estevão Senra pontuam que, após o início das operações de repressão aos garimpos ilegais na terra Yanomami, a partir de fevereiro de 2023, houve uma redução significativa da atividade na região.

O problema é que, no segundo semestre do ano passado, parte dessa mobilização estatal foi reduzida, abrindo espaço para o retorno dos garimpeiros, segundo Senra.

O coordenador de operações de fiscalização do Ibama, Hugo Loss, diz à BBC News Brasil que as limitações de equipamentos e pessoal do órgão levaram à redução de efetivo na região.

"O órgão chegou ao limite de sua capacidade operacional quando surgiram outras demandas emergenciais, como os incêndios florestais, sendo necessário concluir a reestruturação do órgão", disse Loss.

Servidores do Ibama iniciaram uma mobilização no início deste ano para cobrar reajustes salariais e melhorias para as carreiras do órgão.

Dados do órgão apontam que haveria apenas 782 fiscais para atuar em todo o Brasil.

Parte deles precisa ser deslocada a cada emergência ambiental ou para ações específicas.

Apesar disso, as operações de combate ao garimpo ilegal na terra Yanomami ainda não foram afetadas.

Espaço aberto nos céus

Dario Kopenawa, Hugo Loss e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que o retorno do garimpo ilegal não teria sido possível ou seria menos intenso se houvesse um maior controle do espaço aéreo brasileiro, que fica a cargo da Força Aérea Brasileira (FAB), vinculada ao Ministério da Defesa.

Em janeiro de 2023, Lula assinou um decreto que autorizou a FAB a criar uma Zona de Identificação de Defesa Aérea (Zida) sobre a terra Yanomami.

Pelo decreto, as aeronaves que não se identificarem ao controle do espaço aéreo estão sujeitas a medidas como interceptação e tiros de detenção (abate).

"Um dos principais gargalos é o controle do espaço aéreo e da faixa de fronteira", diz Loss.

"Hoje, a gente vê que tem uma operação aérea a partir da Venezuela atuando ali."

O diretor de Amazônia e Meio Ambiente da PF, Humberto Freire, também aponta o controle do espaço aéreo como um gargalo que não foi resolvido.

"Temos registrado voos clandestinos. A logística do minério ilegal tem chegado à terra Yanomami por via aérea. Estamos registrando isso em uma quantidade grande", afirma Freire à BBC News Brasil.

"Na nossa última operação na região, já em 2024, destruímos dois aviões. Se o avião estava lá dentro da terra indígena, significa que o voo ilegal ocorreu."

Freire diz ainda que a FAB não estaria compartilhando dados sobre identificação dos voos clandestinos monitorados pela instituição.

Com estas informações, a PF poderia, segundo Freire, aprofundar investigações sobre a estrutura logística dos garimpos clandestinos.

"O compartilhamento de dados sobre os voos clandestinos, possível identificação de pilotos ainda é uma demanda que a gente apresentou e não recebeu informação", afirma Freire.

A FAB afirmou em nota enviada à reportagem que houve redução "drástica" de voos ilegais, mas não forneceu a quantidade exata de voos detectados.

"Ocorreu uma drástica redução dos voos ilegais, tendo havido uma diminuição de cerca de 90% em relação ao número de aeronaves detectadas antes do início da operação", disse em um trecho da nota.

"Sendo que, em nenhum momento, houve a desativação da Zida, ou seja, até a presente data, ocorrem missões de policiamento do espaço aéreo na região."

A FAB disse ainda que não se negou a fornecer dados sobre voos clandestinos à PF e reforçou seu "comprometimento com a segurança das operações, a transparência e a missão de manter a soberania do espaço aéreo e integrar o território nacional".

Problemas de logística

Os especialistas e lideranças ouvidos pela BBC News Brasil apontam outra falha na atuação das Forças Armadas.

Segundo eles, os militares teriam dificultado ações logísticas como a distribuição de cestas básicas aos yanomami.

Essa queixa está presente, por exemplo, em um ofício encaminhado da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) a diversos ministérios.

"A desmobilização gradual do Ministério da Defesa, com a retirada das estruturas de armazenagem e abastecimento de combustível para aeronaves, inviabilizou todas as atividades previstas para o final deste ano", diz um trecho do ofício obtido pela BBC News Brasil.

Em outro trecho, a Funai diz que essa "desmobilização" teve impactos sobre a segurança alimentar do povo Yanomami.

"A consequência desse gargalo estrutural tem sido, sobretudo, o acúmulo de cestas de alimentos destinadas aos yanomami na unidade armazenadora da Conab [Companhia Nacional de Abastecimento] em Boa Vista, além de outros insumos necessários ao fortalecimento da segurança alimentar ao povo Yanomami", aponta o documento.

O Ministério da Defesa não respondeu à BBC News Brasil sobre as alegações feitas pela Funai e nem justificou o encalhe de cestas básicas.

Em nota, o órgão disse apenas que entregou 36,6 mil cestas básicas e que as ações da pasta em torno da terra indígena Yanomami mobilizaram "1,4 mil militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica" e que "o esforço aéreo somou cerca de 7,4 mil horas de voo".

O que o governo promete agora?

Em janeiro deste ano, o governo anunciou uma série de medidas como forma de tentar resolver a crise na terra Yanomami.

As medidas foram anunciadas após uma reunião ministerial com a presença de Lula.

"Vamos reestruturar a reocupação com a presença definitiva das forças de segurança para que a gente consiga retirar definitivamente a presença de invasores na região", disse o ministro da Casa Civil, Rui Costa, na ocasião.

Entre as medidas prometidas estão uma "Casa de Governo" em Roraima que reunirá membros de diversos órgãos e agências federais como o Ibama, MMA, PF e Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

O governo não informou o prazo para que a casa esteja em funcionamento.

Além disso, o governo prometeu a instalação de três bases dentro do território Yanomami para serem ocupadas de forma permanente por membros de forças de segurança e de saúde.

A medida visa impedir o retorno de garimpeiros e facilitar ações de assistência aos indígenas.

Desarticulação e frustração

Lideranças e especialistas, no entanto, atribuem a persistência da crise Yanomami no segundo ano do governo Lula como resultado do que classificam como "desarticulação" entre os diferentes órgãos destacados até agora para lidar com a situação.

"Houve desarticulação do governo. Mesmo com o presidente mandando, nem todos os ministérios fizeram a sua parte", diz Dario Kopenawa.

Para o coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Márcio Terena, o governo cometeu erros na articulação dos esforços para combater a crise.

Na sua avaliação, as "peças" necessárias para que as ações ocorram de uma melhor forma ainda não teriam sido mexidas.

Ele aponta, por exemplo, que a interação entre as demandas feitas pelo Ministério de Povos Indígenas (MPI) e as forças de segurança não foi suficiente, o que teria resultado, por exemplo, no retorno do garimpo ilegal.

"Não foi o suficiente porque as ações do MPI, por exemplo, precisam da logística fornecida pelas forças de segurança que não estão sob responsabilidade do MPI", diz Terena.

"O resultado não foi satisfatório, porque o comando do presidente (Lula) é muito claro, mas parece que existem algumas resistências internas."

Ele avalia que o cenário atual seria melhor que o deixado pela gestão de Jair Bolsonaro, mas admite que o sentimento junto ao movimento indígena é de "frustração" com o atual governo.

"A gente vinha de quatro anos muito difíceis para os povos indígenas, e a expectativa estava alta", diz Terena.

"Quando a gente observa como essa máquina funciona, a gente percebe que as coisas não caminham como o esperado."

A Secom disse em nota que "a crise na Terra Indígena Yanomami seguirá recebendo atenção contínua da União, cumprindo com um compromisso do presidente Lula de garantia de dignidade aos povos originários do nosso país".

A pasta acrescentou que, "na primeira reunião ministerial de 2024, ocorrida no dia 9 de janeiro, o presidente da República determinou a abertura de novo crédito extraordinário, no valor de R$1,2 bilhão, que será destinado à nova etapa da operação, focada na criação de soluções estruturantes e permanentes para a crise".

A BBC News Brasil também procurou o MPI, a Saúde, a Defesa e o MMA.

Em nota, o MPI disse que, "em relação ao território Yanomami, ao longo de 2023, o governo federal mobilizou uma operação interministerial para salvar vidas, garantir o acesso à saúde aos povos yanomami e a manutenção da integridade da terra indígena".

Em outro trecho, a pasta comandada por Sonia Guajajara apontou que a implantação da "Casa de Governo" em Roraima vai reunir ações de diversos órgãos federais e que essa ação terá caráter permanente.

A Saúde disse em nota que retomou ações na região que haviam sido descontinuadas em gestões anteriores, o que gerou "desassistência e abandono que causaram graves danos à saúde da população indígena nos últimos anos".

A pasta afirmou ainda que conta com a cooperação de forças de segurança para ampliar sua atuação na região por conta da falta de segurança gerada pela ação de garimpeiros ilegais.

"Para garantir o acesso nos locais onde não há segurança, o Ministério da Saúde segue trabalhando de forma conjunta com as Forças de Segurança Pública", disse.

O MMA afirmou em nota que houve uma redução da atividade garimpeira na terra Yanomami nas áreas em que o Ibama atuou.

"De fevereiro a dezembro de 2023, a área desmatada para a abertura de novos garimpos na Terra Indígena Yanomami caiu 85% em relação ao mesmo período de 2022, segundo dados do Brasil Mais, da PF", disse a pasta.

"A redução das áreas de mineração coincide com os locais onde o Ibama atuou para destruir equipamentos e acampamentos de garimpeiros."

O MMA também informou que o governo federal prometeu criar mais três bases locais na região para apoiar ações de combate ao garimpo ilegal e dar assistência aos indígenas.

A nota do Ministério da Defesa, como mencionado anteriormente, citou a entrega de 36,6 mil cestas básicas e o emprego de 1,4 mil militares da Marinha, Aeronáutica e Exército em ações na região.

Este texto foi publicado originalmente aqui.

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