Incêndio no edifício Joelma: O relato do repórter que viu tudo, desde o início

Nos 50 anos da tragédia que marcou São Paulo, Folha republica texto de 1974

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São Paulo

No dia 1° de fevereiro de 1974, um incêndio atingiu o edifício Joelma, no centro de São Paulo, deixando 188 mortos e mais de 300 feridos. No dia seguinte, a Folha publicou um texto do repórter José Carlos Del Fiol, que naquela manhã estava no prédio da Câmara Municipal, próximo ao Joelma, e testemunhou toda a tragédia. Leia, a seguir, a íntegra do relato.

Eu estava na Secretaria de Turismo da Prefeitura, no 12° andar da Câmara Municipal, às 9h, quando senti um forte cheiro de fumaça, que penetrava pelas janelas. De início senti um certo pânico e até um medo, que me percorreu o corpo, como um arrepio. No entanto, pela movimentação das pessoas que estavam comigo, e que, neste momento, se dirigiam ao terraço da Câmara, percebi que havia um incêndio, num prédio próximo da Câmara, pois estavam todos olhando em direção à rua Santo Antonio. Algumas mulheres choravam e muitos funcionários da Câmara, ajoelhados, rezavam. Peguei uma máquina fotográfica e subi ao terraço.

Incêndio no edifício Joelma, em São Paulo, em 1º de fevereiro de 1974 - Acervo UH/Folhapress

Havia uma fumaça negra invadindo o céu. A situação era de desespero total. Bastante nervoso, comecei a fotografar o prédio que estava sendo incendiado. Naquele momento (deviam ser umas 9 horas e 10 minutos) havia muita gente saindo normalmente do prédio, correndo para a calçada, e abraçando-se às pessoas que assistiam ao incêndio. O fogo atingia somente um dos andares do prédio (depois da garagem). Deste andar, umas duas pessoas pularam, depois de tentar inutilmente descer pelas janelas. Os bombeiros ainda não haviam chegado.

A queda das duas pessoas provocou uma reação de desespero total. Algumas funcionárias da Câmara correram em pânico para suas salas de trabalho e, durante muito tempo, encostadas em suas mesas, choraram.

O PRÉDIO EM CHAMAS

Rapidamente, o fogo começou a tomar conta do prédio inteiro, transformando-o numa chama amarelada. Mesmo assim, pude observar que havia movimentação de pessoas na garagem, tentando retirar automóveis. Das janelas, muitas pessoas pulavam, gritando desesperadas.

Calculo que umas 15 pessoas tenham pulado das janelas que, a esta altura, estavam desabando. O terraço do prédio já estava superlotado. As pessoas se deitavam junto ao parapeito e acenavam com roupas para nós, que estávamos no terraço da Câmara Municipal.

Neste instante (por volta das 9 horas e 20 minutos, mais ou menos) os bombeiros chegaram, primeiro pelo lado da avenida Nove de Julho. O trânsito dificultou terrivelmente sua chegada, principalmente no vale do Anhangabaú.

No lado da rua Santo Antonio chegaram dois carros tanques, que começaram a jogar água. No entanto, as mangueiras não atingiam mais do que os primeiros andares. Isso causou nas pessoas que estavam nos andares mais altos um verdadeiro caos.

Duas escadas Magirus foram colocadas ao lado da rua Santo Antonio, mas as mangueiras só conseguiam atingir os primeiros andares. A operação com as escadas Magirus foi bastante demorada e difícil. Muitos bombeiros que subiam pelas escadas tinham de se livrar de cacos de vidros, reboco e objetos dos mais variados, que caíam ou eram jogados pelas janelas. Quando as pessoas que estavam nos andares não atingidos pelas escadas viram a situação, começaram a saltar. Vi uma delas caindo em cima de uma das escadas.

A partir daí, apareceram vários helicópteros. O primeiro deles foi o da Pirelli. Os helicópteros desceram no heliporto da Câmara Municipal, tendo em vista a impossibilidade de atingir o terraço do prédio incendiado onde havia muita fumaça e chamas bastante altas. Pude notar que nenhum dos aparelhos tinha escada, corda ou guincho para tentar resgatar as pessoas que estavam no terraço.

A MORTE DE PERTO

Muitas pessoas que estavam no terraço do prédio desmaiaram. Intoxicadas pela fumaça preta, elas não resistiram, apesar de taparem o nariz e a boca com lenços e mesmo roupas rasgadas.

Através da teleobjetiva, vi a morte de perto. No terraço, as pessoas sufocadas pareciam estar numa câmara de gás, morrendo sem poder esboçar qualquer reação. Senti que minhas mãos tremiam muito e focalizar a tragédia já estava se tornando difícil para mim, pois meus nervos já estavam no fim. Senti um gosto de náusea na boca, uma vontade de fechar os olhos. Mas, continuei fotografando. Até que guardas da PM chegaram ao terraço da Câmara Municipal e pediram para evacuar todo o prédio. Todos os funcionários da Câmara Municipal, Secretaria de Turismo e Tribunal de Contas saíram para as ruas.

Obrigado a descer, apesar de ter insistido com alguns soldados da PM para me deixarem no terraço, fotografando, abandonei o local com uma angústia terrível. A caminho da Redação, onde tinha pressa de deixar minhas fotos, não consegui apagar da memória aquela visão das pessoas pulando do prédio.

A FALTA DE MEIOS

O trabalho dos bombeiros foi muito difícil, principalmente por falta de meios e equipamentos adequados para salvamento em grandes incêndios, como no que assisti. Esse fato causou muita revolta em todos nós que assistimos ao incêndio. Houve inclusive o rompimento de mangueiras, que dificultou muito o trabalho de salvamento. O clima de confusão foi total. Pudemos observar, no entanto, a coragem dos bombeiros. Alguns deles, por exemplo, subiram em prédios vizinhos na tentativa (inútil) de atingir o incendiado.

A impossibilidade de salvar as pessoas foi, na realidade, o detalhe mais cruel do incêndio. Pois todos nós fizemos o papel de espectadores, sem poder fazer nada de concreto para salvar vidas humanas. Isso me revoltou terrivelmente. As pessoas que estavam comigo, acompanhando o incêndio, tinham os olhos vermelhos de lágrimas e de muita fumaça que, com o vento, chegava até nós. Saímos todos psicologicamente arrasados. Nunca me senti tão deprimido como pessoa humana, principalmente porque nunca nos meus 40 anos de vida eu tinha visto a morte tão próxima. É uma experiência que não quero repetir nunca mais.

Página da Folha de 2 de fevereiro de 1974 sobre incêndio no Joelma
Reprodução de página da Folha de 2 de fevereiro de 1974 sobre o incêndio no edifício Joelma, com o relato do repórter José Carlos Del Fiol - Reprodução
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