Brasileiras denunciam racismo em Harvard e questionam diversidade da Brazil Conference

OUTRO LADO: Organização do evento, realizado em Harvard e no MIT, nos EUA, diz que repudia racismo e que está tomando medidas

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Cambridge (EUA)

Duas mulheres negras que participavam da Brazil Conference, evento organizado por estudantes brasileiros de Harvard e do MIT em Cambridge (EUA), afirmam que foram vítimas de racismo enquanto assistiam uma das palestras neste sábado (6).

À Folha Naira Santa Rita afirma que, enquanto acompanhava junto com a amiga, Marta Melo, um painel com Thiago Leifert em Harvard, ouviu três brasileiras que sentavam atrás delas fazerem comentários em inglês sobre seus cabelos. "Elas estavam se questionando se teríamos piolhos em nossos dreads e tranças", disse.

Em seguida, Naira afirma que se virou e olhou imediatamente para trás. "Elas viram que eu tinha entendido e se retiraram. Naquele momento eu não me pronunciei porque sou uma mulher negra, Marta é uma mulher negra, e se a gente interrompesse a conferência, seríamos pintadas e tachadas como mulheres negras são: raivosas, combativas, escandalosas", disse.

Naira Santa Rita (à esq.) e Marta Mello leem carta em que denunciam racismo sofrido durante a Brazil Conference, nos EUA
Naira Santa Rita (à esq.) e Marta Mello leem carta em que denunciam racismo sofrido durante a Brazil Conference, nos EUA - Reprodução

"Tínhamos muito mais a perder do que três meninas brancas de Harvard", afirma.

Naira e Marta participaram na tarde deste domingo de um painel sobre impacto social, formado pelo que a organização chama de "programa de embaixadores da Brazil Conference", um grupo de líderes comunitários selecionados pela organização.

Ao final da mesa, mediada por Regina Casé, Naira leu uma carta de repúdio ao lado de Marta. O discurso foi transmitido pelo canal do YouTube do evento. Casé abraçou as duas em seguida. O público presente aplaudiu as duas de pé.

Em nota, a Brazil Conference afirma que "reconhece e reitera seu compromisso contra o racismo em todas as suas formas". "Repudiamos veementemente qualquer ato de discriminação racial e não compactuamos com tais comportamentos em nossos eventos."

A organização também disse que está "tomando medidas para endereçar o ocorrido".

Naira, porém, afirma que o caso não foi isolado em sua experiência com o evento.

"Quando a gente fala que estamos formando líderes do futuro em Harvard e MIT, que líderes são esses? Quando a gente tem um posicionamento institucional que, como o nosso colega indígena [Ivo Cípio Makuxi] comentou no início da fala dele, nosso painel estava vazio, não tinha executivos, não tinha financiadores, e nos pintam como o coração da conferência", afirma Naira à Folha.

Paralelamente ao painel sobre impacto social, ocorria uma conversa com o bilionário Bill Ackman em um prédio adjacente do MIT, também parte da programação do evento. A ampla sala da qual falou o investidor, que ganhou notoriedade como crítico de políticas de diversidade em universidades e empresas, estava lotada.

Ackman também foi um dos impulsionadores da campanha para a derrubada da então presidente de Harvard, Claudine Gay —a primeira mulher negra a ocupar o cargo—, após polêmicas envolvendo sua atuação em resposta a denúncias de antissemitismo no campus.

Ariane Santos, que também participou do painel sobre impacto social junto com Naira e Marta, caracteriza o evento como um espaço "muito elitista e branco". "Quando a gente tem a oportunidade de vir aqui, a gente não quer se sentir como um produto de vitrine", afirma.

A pesquisadora visitante do MIT Daiane Pettine, que acompanhava o evento da plateia, também critica a organização por falta de diversidade.

"A gente não pode ter um evento sobre o Brasil com uma organização que a maioria não reflita essa porcentagem de participação que é o país. Então, claro que esses casos que acontecem são reflexo disso", diz ela, que também é negra.

"Aí está uma grande oportunidade para a conferência e para as universidades de reverem toda a estrutura da organização desse evento porque esse evento precisa refletir o Brasil", completa.

Protesto no encerramento

Durante o encerramento, os quatro vice-presidentes do evento —todos brancos— comentaram o ocorrido. João Gryynberg repetiu que organização condena "qualquer ato de discriminação e racismo". Eduardo Vasconcelos afirmou que a Brazil Conference é a segunda maior instituição a trazer mais jovens de baixa renda aos EUA com tudo pago, atrás apenas da embaixada americana.

Nesse momento, porém, ele foi interrompido por uma pessoa da plateia que questionou como ele poderia saber a renda dos embaixadores da Brazil Conference, já que essa informação não teria sido fornecida em nenhum momento. Vasconcelos respondeu que jovens de baixa renda seriam priorizados. Novamente, alguém questionou como isso é mensurado, sem resposta.

Erik Navarro também foi interrompido ao falar que a organização adotaria medidas para endereçar o ocorrido. "Que medidas são essas?", perguntaram. Navarro respondeu que isso seria discutido em uma reunião que teriam com os envolvidos na denúncia.

Após essa última fala e a declaração de que o evento havia sido oficialmente encerrado, Daiane Pettine assumiu o microfone e, em protesto, afirmou que a conferência não poderia acabar com uma pessoa branca falando, mas sim com uma negra.

Ela criticou a falta de representatividade da organização, disse que o incidente é um reflexo disso e cobrou que mediadores e palestrantes também sejam mais diversos.

Reconhecendo a importância da Brazil Conference, ela disse que gostaria de um evento que fosse de fato um reflexo do Brasil e, assim, afirmou que no próximo ano quer ver uma conferência negra e indígena.

Ela lançou ainda o desafio de uma edição com essa composição ter ainda mais patrocinadores do que a atual, para ver o real compromisso das marcas com a agenda de diversidade.


Leia a íntegra da carta de repúdio

Foram muitas situações de violência que vivenciamos enquanto embaixadores da Brasil Conference, mas vou enfatizar uma específica. Ontem, em Harvard, durante um painel eu e nossa outra embaixadora, Marta, aqui presente, enquanto juntas estávamos assistindo, três brasileiras brancas, questionavam-se em inglês, entre si: "see these black women? Are there lice in those braids and dreads?"

Que em tradução livre significa: "vê essas negras? Será que tem piolhos nessas tranças e dreads?" Seguido de risos.

O que elas não esperavam é que eu falo inglês. Imediatamente eu as olhei de forma que elas entenderem que eu havia entendido o racismo que estava acontecendo ali, as mesmas se retiraram, depois do meu olhar.

Em outras situações, eu as teria confrontado, porque o constrangimento, principalmente em situações de racismo, é pedagógico, mas diante de tamanha violência em um espaço como a Brasil Conference, que se considera inclusivo, diverso, eu precisei calcular.

Pois eu e Marta, mulheres negras, temos muito mais a perder do que três meninas brancas de Harvard. Se nós as tivéssemos confrontado, nós teríamos sido vistas como mulheres negras raivosas, escandalosas, e até mesmo, vitimistas.

O racismo é meticuloso, e vem se sofisticando cada vez mais, de tal modo que elas se sentiram confortáveis em proferir intencionalmente tais comentários racistas em inglês, acreditando e subestimando que não entenderíamos.

Agora, questionamos: Quantas pessoas negras aqui estavam e passaram pelo mesmo?

O quão a comunidade brasileira aqui presente, e os demais, realmente age para combater o racismo e efetivamente praticar o antirracismo?

O que dialogamos nesse espaço durante esses dias, e nos últimos nove anos, é vazio?

Quantos negros vocês viram aqui enquanto organizadores da Brasil Conference?

Quais são os líderes do futuro que esses espaços como Harvard e MIT estão formando?

Quem são os brasileiros negros, as mulheres negras, indígenas e plurais que estão nesses espaços para além das iniciativas de impacto social?

Quando os VPs da Brazil Conference falam sobre a representação dos brasis, quais brasis estão aqui? E eu questiono, nós questionamos, enquanto embaixadores da décima edição da Brasil Conference e seus financiadores, sponsors: o Brasil que está aqui é o fruto do privilégio do histórico escravocrata?

O Brasil que está aqui reflete os herdeiros do Brasil? Os indicados do Brasil? O Brasil que tem legado de tráfico, exclusão, violência e exploração dos corpos negros, indígenas e plurais estão aqui?

Enquanto estivermos com discursos cheios de práticas vazias, não só o Brasil, nosso amado país, mas também a Brasil Conference e suas estruturas vão continuar refletindo e perpetuando a manutenção das estruturas racistas, excludentes, que não representam o Brasil que queremos de forma alguma.

O Brasil que queremos no presente, e não no futuro, é legitimado e celebrado em sua diversidade, promotor da equidade, inclusão, e dignidade para todos, e não para poucos.

O Brasil que queremos é o Brasil que a educação como oferecida por Harvard e MIT, assim como a cultura, sejam tidas como acessíveis e ordinárias, como bem fala nosso Gilberto Gil, e não como títulos que diferenciam quem é mais capaz que quem, ou que acentuam ainda mais as desigualdades e abismos sociais.

Quero agradecer a Brenda Maria e ao professor Maurício Antônio, ao Eduardo e Rick, pela acolhida e intencionalidade em promover efetiva tratativa ao que ocorreu e no comprometimento em não permitir que seja negociável que situações como as que os embaixadores vivenciaram esse ano, ocorram novamente em próximas edições da Brasil Conference em Harvard e no MIT.

Essa fala é com o intuito que a Brasil Conference, seus financiadores e sponsors, como o YouTube, Nomad, Fundação Lemann e outros, consigam a partir dessa histórica décima edição, se fortalecer na construção genuína e legado no que realmente queremos como Brasil hoje e não existe Brasil sem diversidade.

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