Descrição de chapéu Chuvas no Sul

Falta de escolas e saudades de amigos viram desafio para crianças do RS na reconstrução

Jovens relatam vontade de rever colegas e cobram medidas do poder público; especialista alerta que geração já tinha enfrentado trauma da pandemia

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Porto Alegre (RS)

Abraçar a professora e rever os amiguinhos da escola são alguns dos desejos de crianças que tiveram suas vidas afetadas pelas enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em maio.

A Folha acompanhou um grupo de 30 crianças de 4 a 16 anos na Vila Farrapos, localizada na zona norte de Porto Alegre, durante a tarde de sexta-feira (14). Resto de lama, entulho nas ruas e cheiro forte ainda faziam parte do cenário da região.

Brinquedos são descartados após fortes chuvas que deixaram ao menos 500 mil de pessoas do Rio Grande do Sul desabrigadas. Na imagem, bonecas e bichos de pelúcia estavam na rua do bairro do Sarandi, zona norte de Porto Alegre
Brinquedos são descartados após fortes chuvas que deixaram ao menos 500 mil de pessoas do Rio Grande do Sul desabrigadas. Na imagem, bonecas e bichos de pelúcia estavam na rua do bairro do Sarandi, zona norte de Porto Alegre - Carlos Macedo - 11.jun.24/Folhapress

Antes de tragédia climática, cerca de 120 crianças do bairro frequentavam a Fé e Alegria, instituição que pertence a Companhia de Jesus. A unidade foi duramente atingida pelo temporal e agora busca doações e voluntários para dar início ao trabalho de reconstrução.

Para evitar que as crianças continuem ociosas, a igreja, que fica ao lado, cedeu uma sala. As atividades recomeçaram no início da semana passada, com 30 crianças.

A instituição recebe jovens de cinco escolas da região —nenhuma delas reabriu ainda. De acordo com dados da Secretaria de Educação, o Rio Grande do Sul ainda tinha 1.090 escolas afetadas pelas enchentes até sexta, com 396 mil estudantes impactados.

No dia que a reportagem visitou o projeto, as crianças participaram de uma atividade de pintura. Nos desenhos, alguns retratavam o cenário dos alagamentos com registros de uma casa, o sol e a frase "minha casa sendo reconstruída na enchente". Outro mostrava um barco com pessoas sendo resgatadas por helicópteros.

Desenho de jovem que vive na Vila Farrapos
Desenho de jovem que vive na Vila Farrapos - Isabella Menon/Folhapress

As crianças menores relatam sentir falta da escola e tristeza por perder casa e pertences, mas também relembram as fortes chuvas de uma forma lúdica.

Alguns se divertem ao relatar o momento que foram resgatados de suas casas —para muitos, a primeira vez que andaram em um barco— e outros dizem que sentem até falta dos abrigos que ficaram, já que lá havia diversas crianças e eles podiam brincar o dia todo.

Já os adolescentes tem um olhar um tanto quanto diferente e brincam que não estão com saudades da sala de aula, mas relatam receio por terem perdido maior parte do material na água. Quando indagados sobre o que têm feito nos últimos dias, respondem quase que em uníssono que "nada".

Uma jovem imigrante de 14 anos diz que a inundação foi uma forma da água reinvindicar seu espaço, uma vez que atribui o desastre às construções em áreas que deveriam ser preservadas.

Sede do Panelinha Futebol Clube toda cheia de lama no bairro Sarandi, na zona norte de Porto Alegre
Sede do Panelinha Futebol Clube toda cheia de lama no bairro Sarandi, na zona norte de Porto Alegre - Carlos Macedo/Carlos Macedo/Folhapress

Um pouco mais velhos, dois meninos de 16 anos ajudaram no resgate de animais de estimação. Um deles lembra que passou a primeira noite do abrigo do lado de fora, uma vez que o seu pet estava estressado e o bichinho não era autorizado no meio dos resgatados.

Agora, eles falam na necessidade de valorizar as coisas pequenas, se sentem mais próximos das famílias e agradecem a ajuda de voluntários, mas admitem que a retomada não é fácil e nem todos conseguiram se salvar —ao menos 173 pessoas morreram e 38 seguem desaparecidas, segundo a Defesa Civil gaúcha.

Eles lamentam a perda de eletrodomésticos e roupas mais caras, como um dos adolescentes que comentou que tinha comprado uma calça para ir a uma festa de debutante, mas perdeu ela no meio das chuvas.

Apesar da pouca idade, os jovens cobram respostas das autoridades, afirmam que deveria ter um maior preparo por parte do poder público para as chuvas fortes e consideram que o tempo que passaram em abrigos ou casas de parentes foi longo demais —parte deles passou mais de um mês em abrigos.

Os adolescentes também afirmam ter ficado surpresos com os relatos de saques durante as enchentes, e dizem que eles próprios ajudaram a esconder objetos de alto valor.

Assim como adultos, eles também falam do medo de novas chuvas levarem novamente tudo que conseguiram na retomada e afirmam que, dentro de casa, já ouvem conversas dos familiares que pretendem deixar o bairro caso a água retorne.

Para a psicanalista Katia Radke, essa geração de jovens e crianças gaúchas ficará marcada por dois momentos trágicos: a pandemia e as enchentes. "No primeiro, ao ficar em casa, nos protegíamos. No segundo, as casas foram afetadas", diz.

"Alguns ainda não conseguem falar. É importante estimular as crianças a brincar e a ficar mais próximas das famílias", diz Radke, que explica que houve casos em que, por questão de prioridade, crianças foram resgatadas antes de seus pais ou vice-versa.

"Essas crianças viveram um pânico, porque experimentaram —mesmo que por pouco tempo— terem perdido seus pais. Estimular que eles falem, até por meio de histórias, ajuda neste momento."

Agora, com o retorno às vidas e compreensão de todas as perdas, é preciso atenção redobrada. "As crianças estão carregando uma situação trágica em uma mente ainda formação. A preocupação é que essas crianças tenham a percepção de que viver é muito perigoso, que se perde e se morre muito."

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