Descrição de chapéu Minha História

'Levei 36 anos para conseguir colocar o nome do meu pai em minha certidão de nascimento'

Milhares de crianças que nascem até hoje no Brasil só têm o nome da mãe em seus documentos

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São Paulo

Após 36 anos, a mineira Maria Aparecida Silva conseguiu, na Justiça, o direito de colocar o nome do pai em sua certidão de nascimento.

Natural do interior de Minas Gerais, Maria se mudou para São Paulo aos 18 anos em busca de um futuro melhor. Na capital paulista, estudou jornalismo, se tornou mãe, mas, durante todo esse tempo, sempre faltou o nome do pai em seus documentos. E os números mostram que ela não está sozinha nessa estatística.

De acordo com dados da Arpen-Brasil (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), assim como ela, cerca de 500 crianças são registradas todos os dias só com o nome da mãe no país. Só em 2023, dos 2,5 milhões de nascidos, 172,2 mil deles tinham pais ausentes.

Na ausência do pai, o registro de nascimento deve ser feito somente com o nome da mãe. Foi exatamente o que aconteceu com a mineira. Ela e os dois irmãos só foram registrados após o falecimento do pai, ocorrido quando ainda eram pequenos. Naquela época, diz, no local em que moravam, era comum "os pais levarem todos os filhos para serem registrados no mesmo dia".

Uma mulher jovem e um homem mais velho compartilham um momento alegre juntos, capturado em uma selfie. Ambos estão sorrindo, e o cenário sugere que eles podem estar em um parque ou área ao ar livre com árvores ao fundo, desfrutando de um dia ensolarado.
Cida Silva contou com a confirmação do avô, Antonio, para colocar o nome do pai em sua certidão de nascimento - Arquivo pessoal

Maria diz que sempre sentia "um nó na garganta" quando era questionada sobre o nome do pai. Não que não soubesse os dados dele, mas, para ela, dizê-lo sem conseguir provar a fazia se sentir "mentirosa".

Foi justamente buscando essa prova que no ano passado ela entrou na Justiça com um pedido de reconhecimento de paternidade pós-morte. Realizar um exame de DNA com parentes do seu pai seria o caminho mais comum em casos assim. Porém, o testemunho do avô em juízo, a reconhecendo como neta, já foi suficiente para que a Justiça autorizasse a inclusão do nome do pai em seus documentos.

"'Qual é o nome do seu pai?' Desde muito pequena essa sempre foi a pergunta que me apavorava, me dava um nó na garganta. O meu corpo travava inteiro e eu simplesmente não conseguia responder. Não que eu não soubesse o nome e sobrenome dele, já que vivemos juntos do meu nascimento até a sua morte, ocorrida na minha infância, mas, simplesmente pelo fato de essa informação nunca ter constado em meu registro. Dizer quem era o meu pai, sem conseguir provar, fazia com que eu me sentisse mentirosa.

Eu levei 36 anos para conseguir, na Justiça, o direito de colocar o nome dele em minha certidão de nascimento. Para muitas pessoas, isso é algo natural, um direito adquirido ao nascer, mas a minha história, assim como a de milhares de crianças que nascem até hoje no Brasil, teve um caminho diferente do normal: no meu registro não constava o nome do meu pai.

Eu nasci na roça, no interior de Minas Gerais. Naquela época, tempo em que o custo para se fazer um documento era considerado alto, principalmente para quem não tinha muita instrução nem recursos, era comum os pais registrarem todos os filhos no mesmo dia. Juntavam três ou quatro crianças e as levavam, a pé, a cavalo ou em uma carroça de boi, até a cidade. E assim, era documentada a existência de uma família inteira.

A minha história também deveria seguir esse curso, porém, o meu pai, que vivia com a minha mãe desde adolescentes nas terras do meu avô, morreu quando eu tinha 5 anos, deixando uma companheira com três filhos sem registro.

Depois do falecimento dele, a minha mãe foi ao cartório para registrar todo mundo. Mas, sem a presença do meu pai e sem um exame de DNA, ela foi obrigada a colocar somente o seu nome em nossos documentos.

Dizem que a nossa luta por sobrevivência começa dentro da barriga, mas eu acredito que na minha família começou exatamente naquele momento no cartório. Sem conseguir provar que eram casados e que éramos filhos dele, a minha mãe teve o direito a uma aposentadoria negado por mais de 20 anos e precisou lutar muito para que a gente tivesse o mínimo: comida na mesa. Quando o alimento é a prioridade, a falta de uma informação em um documento se torna irrelevante.

Muitos anos se passaram e muitas coisas mudaram em minha vida, mas a minha inquietude com a falta do nome do meu pai permaneceu a mesma.

Sem a presença do meu pai e sem um exame de DNA, minha mãe foi obrigada a colocar somente o seu nome em nossos documentos, deixando assim um espaço vazio que durou a minha vida inteira

Cida Silva

jornalista

No final do ano passado, já com 36 anos, morando em São Paulo e mãe de dois filhos, eu fui à minha cidade e decidi procurar um advogado para entrar com uma ação de reconhecimento de paternidade pós-morte. Ele entrou com o pedido, mas me disse que a prioridade nesse caso seria fazer um DNA com o meu avô, de 90 anos. A família do meu pai vive até hoje na roça. E levá-lo, com a idade avançada, até o fórum se tornou um desafio e tanto.

Em maio, o juiz marcou uma audiência de conciliação para o dia 4 de junho. Ele determinou que o meu avô comparecesse e, caso ele confirmasse que eu era a sua neta, o nome do meu pai seria acrescentado em meu registro. O testemunho dele ganhou um papel fundamental no processo.

Sabendo dessa informação e com o coração cheio de esperança, eu peguei um ônibus e viajei por 1.300 quilômetros até a minha cidade natal. Eu teria a missão de explicar exatamente o que estava acontecendo para um senhor que, de acordo com as palavras dele, 'nunca entrou nem em uma delegacia', mas que concordou em ajudar desde o primeiro momento.

No dia da audiência, eu o busquei na zona rural e o levei, junto com uma prima e com a minha mãe, até o fórum. O meu avô não enxerga quase nada, mas acredito que ele veja a alma das pessoas. Ele foi segurando em meus braços, confiante e orgulhoso, até a sala. Lá, o advogado perguntou se ele me reconhecia como neta. E o seu Antonio, de uma forma muito simples e humilde respondeu: 'Eu coloco a minha mão no fogo que ela é minha neta, doutor'.

Naquele momento, que considero um dos mais importantes da minha vida, as lágrimas escorreram pelo meu rosto. Era a confirmação de que eu poderia dizer o nome do meu pai em voz alta, de que mesmo após a morte, ele vivia em mim.

Acordos como esse (que levam em consideração o depoimento do familiar sem a necessidade de DNA) ainda são desconhecidos pela maior parte da população, mas são fundamentais para corrigir uma série de erros do passado.

Existe uma campanha que se chama 'Meu pai tem nome', uma iniciativa do Condege (Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais), que tem justamente o objetivo de acelerar esse tipo de processo. E hoje, depois de 36 anos, eu posso dizer, sem nó na garganta, que o meu também tem."

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