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Caso 'Bel para Meninas' e a exposição infantil nas redes

'Sharenting', ato de constranger filhos em redes sociais, levanta a discussão para o direito das crianças à privacidade

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São Paulo

Na semana passada, os vídeos de uma família que tem diversos canais no YouTube tornaram-se um dos assuntos mais comentados nas redes sociais.

Em uma dessas plataformas, destinada a retratar a vida da garota Bel, de 13 anos, internautas chamaram atenção para supostos maus tratos que a adolescente recebia da mãe, conhecida como Fran, como fazer a filha lamber uma mistura de bacalhau com leite, quebrar um ovo em sua cabeça ou dizer à menina que ela seria adotada. O canal tem mais de 7 milhões de inscritos.

Por meio da hashtag #SalvemBelparaMeninas, o caso ganhou notoriedade principalmente no Twitter e virou manchete em alguns veículos de comunicação, que noticiaram o envolvimento do Conselho Tutelar e do Ministério Público.

Os vídeos que continham essas cenas foram retirados do ar. Em um vídeo recente, os pais de Bel afirmaram que iriam “privar” os vídeos em que as filhas aparecem e chamaram a repercussão em torno do canal de “monstruosa” e “covarde”.

Vídeos que mostram crianças em situações constrangedoras não são novidade nas redes. Imagens de pais e mães empurrando o rosto de seus filhos e filhas em bolos de aniversário, na hora de cantar “parabéns”, são bastante comuns na timeline do Twitter e no Facebook, sempre com milhares de compartilhamentos e curtidas.

O debate em torno disso também não é recente: há anos se discute se o ato de publicar as fotos de filhos na internet, conhecido como sharenting (share = compartilhar + parenting = parentalidade), pode ser classificado como invasão de privacidade, uma vez que as crianças obviamente não têm condições de consentir ou não com a exposição.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afirma que “é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Também prevê pena de seis meses a dois anos de detenção para quem “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento”.

É estarrecedor que no vale tudo pelo like crianças e jovens sejam expostos a situações humilhantes pelos próprios familiares para uma audiência impossível de se dimensionar, uma vez que esses vídeos e fotos podem ser baixados das plataformas e serem armazenados e compartilhados por aplicativos de mensagens.

Além disso, é preciso lembrar da perenidade desses conteúdos. Quais os efeitos que esses vídeos terão na socialização dessas crianças e também na vida adulta delas, uma vez que sabemos dos obstáculos infindáveis que as redes impõem ao chamado “direito ao esquecimento”, fazendo com que tais conteúdos estejam sempre atrelados à reputação delas? Como proteger a privacidade nesses casos?

Postagens humilhantes como essas só se tornam conhecidas porque obviamente contam com grande audiência. A viralização dessas imagens, muitas vezes transformadas em memes, remete à responsabilidade que todos temos ao curtir, comentar e compartilhar esse tipo de conteúdo. A ciência do que esse tipo de publicação pode causar na vida da criança e das famílias também precisa ser de todos que se deparam com esses posts nas redes.

Um caso emblemático nesse sentido foi o da jovem Débora que, em 2012, aos 15 anos, publicou uma selfie em seu Facebook usando os óculos de sol de um parente. A imagem foi “roubada” de seu perfil, virou meme e viralizou com comentários que faziam chacota da aparência da garota. Ela chegou a abandonar a escola e tentou tirar a própria vida por conta da repercussão.

Outro caso que gerou uma repercussão estrondosa nas redes foi o do vídeo do Bar Mitzvá de Nissim Ourfali, também em 2012, cujo alcance chocou a família, que entrou na justiça para que as imagens fossem retiradas do YouTube, uma vez que o vídeo foi replicado nas redes por diversos usuários.

Vivemos em uma sociedade hiperconectada e tomamos inúmeras decisões online, como deixar um like ou passar para frente textos e imagens, sem pararmos para refletir. Se insistimos na ideia de que a educação de hoje precisa considerar o universo digital e que educar para a informação é um jeito de formar cidadãos livres e aptos a fazer escolhas conscientes, também precisamos desenvolver essas habilidades em nós mesmos. Isso vale para pais, mães, responsáveis, professores e demais cidadãos, ainda mais quando estamos tratando de proteger nossas crianças e jovens.

Mariana Mandelli

Coordenadora de comunicação do Instituto Palavra Aberta

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