Crianças precisam aprender sobre ciência de dados na pré-escola, diz professora de Stanford

Para pesquisadora, a competência é importante para os alunos entenderem o mundo atual

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São Paulo

Para onde quer que se olhe, há dados. No volume abissal de informações geradas pelas pessoas na internet, nos chutes e na movimentação de jogadores de futebol ou mesmo nos passos diários que damos e na frequência cardíaca monitorados por relógios e smartphones.

Para Jo Boaler, psicóloga, doutora em educação matemática e professora da Universidade Stanford (na Califórnia), é fundamental que as crianças, desde a pré-escola, já comecem a desenvolver habilidades para manusear e lidar com dados, já que são eles que embasam praticamente qualquer tipo de decisão, desde o lançamento de um novo produto até a escolha de qual caminho o GPS vai sugerir.

Boaler defende, em entrevista à Folha, que essa alfabetização de dados é uma das competências mais importantes para se navegar no mundo de hoje.

Jo Boaler, 57,  é professora associada da Universidade Stanford
Jo Boaler, 57, é professora associada da Universidade Stanford - Divulgação

Uma das maiores realizações de Boaler é a concepção e difusão da abordagem conhecida como Mentalidades Matemáticas, que auxilia professores e alunos a construírem um conhecimento menos baseado em decorebas e na binariedade de certo ou errado, e com mais foco na investigação, no questionamento e na visualização de padrões. Já há bons resultados da iniciativa também no Brasil.

A pesquisadora também é uma das defensoras da iniciativa Data Science 4 Everyone (ciências de dados para todos), que tem como objetivo transformar a educação básica dos EUA em um ambiente favorável a esse tipo de aprendizado.

Nos dias 26 e 27 de outubro, Boaler participará de um evento do Instituto Sidarta em parceria com o Itaú Social direcionado a gestores públicos e secretarias municipais de educação do Brasil sobre como transformar o ensino da matemática no período pós-pandêmico. A ideia é que, com os exemplos trazidos pela professora de Stanford, mais portas se abram para a implementação dessas iniciativas no país.

A partir de quando é possível que a criança aprenda sobre ciência de dados? Esperamos que as crianças comecem desde a mais tenra idade a ter o que chamamos de alfabetização em dados. Sabemos que é muito importante para os jovens serem capazes de ler os dados e entender os que são exibidos no mundo. E é uma área empolgante para as crianças nas salas de aula, ela ajuda a dar sentido ao que elas sabem sobre si mesmas e sobre suas famílias.

Nas redes sociais, esses estudantes podem ser enganados a partir de dados imprecisos ou quando são apresentados apenas parte deles, sem o contexto completo. Quando os alunos ficam mais velhos, com 16 anos ou mais, eles podem aprender o que é mais formalmente conhecido como ciência de dados.

Mas que tipo de atividade uma criança na pré-escola pode desenvolver nessa área? As crianças mais novas podem, por exemplo, trazer seus brinquedos favoritos. E então eles começam a pensar em como poderiam reunir os dados de toda a turma e quais seriam as variáveis. Podemos olhar a cor? A textura —macio ou áspero? Será que é um animal? De que tipo? Eles podem apresentar os dados num gráfico ou outra forma visual. Pode ser algo muito envolvente para os alunos, já que é algo do mundo deles.

A sra. pode contar como se deu a reunião de mais de cem pessoas para lançar a iniciativa Data Science 4 Everyone (Ciência de Dados para Todos)? Eu me envolvi pela primeira vez quando fui contatada por Steve Levitt, economista da Universidade de Chicago e autor do livro Freakonomics. Ele participava de um grupo com muita gente experiente do Google, do Departamento de Educação e pensadores de altíssimo nível. Foi aí que nasceu a ideia.

Na Califórnia, a ciência de dados já tem um papel central dentro do currículo de matemática, com espaço ao longo de toda a trajetória escolar. As universidades se comunicaram com as escolas de ensino médio, pedindo para reduzirem parte da carga horária de álgebra a fim de incluir a ciência de dados.

Não sei se no Brasil é igual, mas aqui nos EUA os alunos sempre tiveram uma carga horária de álgebra muito pesada. É uma espécie de preparação para o cálculo que se aprende na universidade, mas a maioria das pessoas não cursam cálculo, e todo mundo vai precisar, em algum momento, lidar com análise de dados. E cerca de 15 outros estados já sinalizaram mudanças semelhantes no currículo.

Deve ter sido bastante difícil até vocês chegarem nesse estágio. É realmente fantástico que tenhamos conseguido mudar o currículo de matemática. Estávamos ensinando a mesma coisa desde 1892.

Na prática, como implementar o ensino de ciência de dados? Pelo menos no Brasil, os professores não costumam ter esse tipo de conhecimento. E os profissionais competentes em ciência de dados são rapidamente absorvidos pelo mercado, em outras funções. Você está certo em apontar que isso é algo novo que os professores precisam aprender, mas não é tão assustador quanto pode parecer em termos de conteúdo. Alguns professores relatam que estão aprendendo muito, junto com as crianças. Estão se familiarizando. Professores de matemática recebem algum treinamento em estatística na faculdade, e há muita estatística nas ciências de dados. O que eles nem sempre sabem é programação, ou usar algum tipo de ferramenta de visualização de dados.

Como você avalia a chance de implementação dessa iniciativa no Brasil, considerando as dificuldades do país? A gente tem muitas coisas em nosso site, e o Instituto Sidarta tem traduzido tudo para o português. Temos uma seção muito interessante, a Conversas sobre Dados, que traz exemplos como derretimento das calotas polares, a probabilidade de fazer um gol no futebol feminino dependendo onde a bola vai, seja ao longo do jogo ou num pênalti, e o desmatamento da Amazônia.

A ideia é mostrar os exemplos para os alunos e questionar o que eles percebem, o que aqueles dados querem dizer. Essa é uma ótima forma de as crianças desenvolverem alfabetização em dados. Elas, a partir de uma visualização de dados, podem dizer o que aquilo diz e o que não diz.

Colocamos isso em nosso site há um ano, durante a pandemia, quando todos estavam muito estressados, e tivemos 100 mil downloads! Os professores estão achando muito fácil levar esse conteúdo para sala de aula. Como eu disse, é envolvente!

Existe muita sinergia no ensino de matemática e de ciência de dados. Quais as melhores formas de um conhecimento se beneficiar do outro? Trabalhar com ciência de dados é um processo de investigação. Tudo começa com uma pergunta, e aí vou coletar dados, analisá-los e, em seguida, comunicá-los das mais diferentes maneiras. Esse processo de investigação está totalmente ligado à matemática. E seria muito legal se a matemática fosse ensinada de uma forma aberta e criativa, não é?

Mas a ciência de dados se conecta com outras disciplinas do currículo, seja com dados históricos, em aulas de ciências e até em educação física —qualquer disciplina. E tudo isso combinado com tecnologia. Essa é a matemática que o mundo precisa neste momento.

Queria falar da abordagem Mentalidades Matemáticas, projeto que vem ganhando espaço e que já tem resultados também no Brasil. Nessa iniciativa, qual foi o grande desafio e qual é o grande aprendizado? Recomendamos uma abordagem realmente diferente para ensinar matemática, com mais profundidade e conexões, e não apenas com exercícios e provas, mas em alguns distritos dos EUA os professores acham que não têm autorização para alterar a abordagem vigente, como se tivessem que sempre usar um certo livro antigo para ensinar. Nunca é fácil realizar mudanças tão profundas. Mesmo assim, já são centenas de milhares de professores ensinando de forma diferente agora.

O que você deixaria de mensagem para uma criança que ainda não gosta de matemática? Ela tem que saber que ela pode aprender tudo o que quiser. Temos que fugir da ideia de que só algumas pessoas têm um "cérebro matemático", que tem o dom para ela. Nós já sabemos que todos podem desenvolver seus cérebros e aprender o que quiserem e o quanto quiserem.


Jo Boaler, 57

Nascida no Reino Unido, mora na Califórnia (nos EUA), onde é professora da Universidade Stanford. Ela pesquisa o impacto de diferentes condutas e enfoques no ensino de matemática e é idealizadora de Mentalidades Matemáticas, abordagem que torna o aprendizado da disciplina mais visual e intuitivo. Ao todo, já escreveu 18 livros. Com outros pesquisadores, além de economistas e gestores públicos, participa da iniciativa Data Science 4 Everyone (Ciência de Dados para Todos), que busca mais espaço para as ciências de dados no currículo escolar.

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