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USP vive riqueza da diversidade, desafio com dificuldades de cotistas e tensão com fraudes

Professores elogiam o acesso de estudantes pretos, pardos e indígenas, mas cobram melhorias no programa

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São Paulo

Nas aulas de direito penal da Faculdade de Direito da USP do largo São Francisco, em São Paulo, discute-se a violência policial. Não é difícil imaginar que esse debate era um antes do programa de cotas da universidade, quando praticamente todos os estudantes eram brancos da elite econômica, e que se tornou bem diferente depois do início da reserva de vagas para pretos, pardos e indígenas de escolas públicas.

"É um tapa na cara, a gente desce do pedestal e vai para o mundo real", resume Pierpaolo Bottini, professor do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense. Para ele, desde que as cotas tiveram início na USP, as discussões em suas aulas ficaram "mais ricas, estimulantes, com visões e pensamentos diferentes".

"Aumentou a participação de todos, cotistas e não cotistas, com análises impressionantes sobre assuntos como políticas de segurança pública e combate ao crime organizado", diz. "Espero que tenhamos também diversidade entre os professores e que a inclusão dos alunos se reflita nos futuros juízes e promotores."

O reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti Junior, em cerimônia no palácio dos Bandeirantes - Mathilde Missioneiro - 26.jan.2022/Folhapress

Bottini afirma que não percebe desnível entre os alunos vindos de escolas particulares e os das públicas. "O que eu vejo é um empenho muito grande dos cotistas."

"Mas há disciplinas nas quais fica mais nítida a diferença da qualidade de ensino da rede pública para a privada na educação básica. Na área de exatas, por exemplo, isso ocorre com muita frequência", conta Lucas Ventura, 21, que está no 5º semestre de engenharia da computação e é membro do coletivo de estudantes Poli Negra.

"Há professores que tentam retomar conteúdos do ensino médio e outros que dão as aulas como se esse desnível não existisse, o que acaba deixando muita gente para trás", diz. "Os alunos têm se ajudado, com programas de apoio de centros acadêmicos, grêmios e coletivos negros", diz Lucas, que estudou em um colégio particular de bairro, em São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo, e entrou na USP pela chamada ampla concorrência da Fuvest, para estudantes do ensino privado.

Um professor de exatas conta que observa dificuldades dos cotistas, especialmente no início da graduação. Ele afirma ser natural que tanto as aulas quanto as provas tenham de ser moduladas para suprir o deficit de alunos oriundos de escolas públicas. Para ele, não há como negar que haja com isso um custo para a qualidade da USP.

O docente se diz favorável às cotas, mas tem críticas ao modo como vêm sendo implementadas, sem um trabalho voltado ao preparo do aluno antes do ingresso na universidade. Ele diz acreditar que, com esse formato, haja um risco de perpetuar a falta de qualidade da educação básica pública no país.

O professor faz parte de uma corrente de educadores que defende que haja cursinhos pré-vestibular gratuitos até que as escolas públicas de ensino fundamental e médio tenham bom nível.

Admitir as imperfeições do programa de cotas, sustenta o docente, seria uma forma de manter sempre a luz amarela acesa e de aperfeiçoá-lo. Mas ele diz que esse tema é tratado como se houvesse unanimidade e o debate estivesse interditado. Por isso, o professor afirma que, diante do risco de cancelamento, prefere não ter seu nome divulgado.

Um ponto especialmente delicado dessa discussão são as cotas raciais e as polêmicas em torno de possíveis fraudes, uma vez que o sistema é o da autodeclaração. Segundo alunos e professores ouvidos para esta reportagem, existe na universidade um certo "clima de inquisição", em que cotistas de pele clara são denunciados por colegas.

Lucas, do coletivo Poli Negra, afirma ser "perceptível que há fraudes, principalmente em cursos mais concorridos". Ele conta que essa situação gera uma tensão entre os estudantes, e defende que "a universidade discuta propostas para esse desafio".

O reitor da USP, Carlos Gilberto Carlotti Júnior, já anunciou que pretende criar uma banca de identificação racial antifraudes. Segundo ele, o objetivo é também evitar esse clima tenso de denúncias e dar estabilidade ao estudante que entra por cotas. "Se for feito um sistema de verificação logo no início, acabou o problema. O aluno segue seu curso sem a instabilidade de poder ser denunciado a qualquer momento", afirma.

Não é simples, no entanto, definir que critérios essa banca adotará. "Essa é uma questão que existe na sociedade, e a universidade, que é uma fonte de informação e de conhecimento, deve buscar uma solução para isso com suas melhores cabeças."

Segundo a reitoria, desde o início do programa de cotas na USP, foram recebidas 193 denúncias, das quais mais de 70% (138) foram consideradas improcedentes. Há ainda 50 em análise, e cinco matrículas foram invalidadas, com a expulsão dos alunos.

Carlotti diz não haver planos de mudanças significativas na política de cotas. Talvez haja espaço, em sua avaliação, para se definir melhor critérios socioeconômicos para as cotas, "dada a heterogeneidade das escolas públicas".

Os próximos anos, aponta o reitor, serão para "ajustes finos" de incorreções. Cita, por exemplo, cursos em que a nota de corte dos cotistas no vestibular acaba sendo maior do que a dos demais e outros nos quais não são preenchidas as cotas para pretos, pardos e indígenas.

Reconhece ainda que a inclusão de indígenas é pequena, até porque o vestibular se limita ao estado de São Paulo. Menciona um projeto da Unicamp e da UFSCar de realizar a prova em localidades próximas a comunidades indígenas e diz que a USP poderia avaliar algo semelhante, talvez até em parceria com essas universidades.

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