'PL das Fake News tem tudo a ver com combate à violência nas escolas', diz diretora da Unesco

Marlova Noleto diz que ambiente escolar não está mais violento, mas ataques refletem discurso de ódio propagado nas redes

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Brasília

Os recentes ataques em escolas e a disseminação de ameaças, que levaram pânico a famílias, reforçam a necessidade de investir na construção de uma cultura de paz no ambiente escolar, o que passa por uma análise de dados e pesquisas sobre o tema e regulamentação das plataformas digitais.

É o que diz a diretora da Unesco no Brasil, Marlova Noleto. A entidade vem trabalhando há anos este tema, com a própria dirigente, que tem formação em serviço social e experiência na antiga Febem.

Para Noleto, as escolas não estão mais inseguras ou violentas, mas sofrem os reflexos dos discursos de ódio e de legitimação da violência que circulam nas redes sociais.

Marlova Noleto, diretora da Unesco no Brasil, na sede do órgão em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

"O Brasil passou a permitir o aumento da população armada, o estímulo à violência e um ambiente de ódio nas redes", disse Marlova Noleto, 61, à Folha. "O projeto de lei chamado de PL das Fake News tem tudo a ver com esse desafio. Porque a desinformação permite o crescimento de um ambiente de violência, e nos últimos anos vimos uma verdadeira infodemia."

Noleto elogia a postura do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em convocar governadores e prefeitos para tratar do tema em conjunto. No último dia 18, o governo apresentou um pacote de ações ao lado de gestores de todo o país.

A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) está presente em 193 países. Noleto diz que essa experiência mostra que aumentar a segurança armada nas escolas não resolve o desafio. "A obrigação é entender, ter dados, estatísticas, conhecer o diagnóstico para aprofundar programas e projetos."

Até pouco tempo atrás, ataques em escolas não pareciam ser uma realidade brasileira. Como a senhora vê esse novo cenário no país? Desde 2000 pesquisamos o fenômeno das violências nas escolas no Brasil, e elas aparecem de múltiplas formas. Mas nos últimos anos o Brasil viu o aumento do ódio e da violência e, de muitas maneiras, um ambiente em que se estimulou o armamento da população e o ódio nas redes sociais cresceu muito. Um ambiente sem controle na internet permite que as pessoas tenham comportamento que não condiz com o que se espera de uma vida com parâmetros civilizatórios.

Mas houve uma grande angústia no país sobre os ataques serem direcionados às escolas. A violência nas escolas também é reflexo da violência na sociedade. Vimos, inclusive, situações de polarização política e enfrentamento que terminaram em mortes fora do ambiente escolar.

Mas a escola é um território sagrado e precisa ser seguro. Além de um espaço de aprendizagem, deve ser um espaço de socialização, convivência, acolhedor para todos, de estímulo à tolerância e do respeito à diversidade. Porque vemos que muitos desses atos violentos nascem em situações de bullying. E a situação piora quando há uma legitimação de um contexto em que é possível ser violento, desrespeitar.

Temos que possibilitar que a escola de fato seja acolhedora e inclusiva para quem sofre bullying, seja por gordofobia, racismo, questões de gênero, pobreza menstrual. Precisamos olhar para todos os problemas.

Como se conclui que há uma legitimação dessa violência? Não podemos esquecer que o Brasil fez uma importante campanha pelo desarmamento. E, de repente, o mesmo país volta com estímulo ao acesso às armas. São mensagens desconexas para a população.

O que fazer diante disso? A obrigação é entender, ter os dados, as estatísticas, conhecer o diagnóstico para aprofundar programas e projetos que possam dialogar com a realidade de maneira integral e integrada para prevenir todas as formas de violência nas escolas. Esse diálogo é amplo e não se restringe só à comunidade educacional.

As escolas estão hoje mais inseguras por causa dos episódios recentes e de todo esse contexto? Eu não diria que as escolas brasileiras estão mais inseguras do que eram há 20 anos. Como disse, o que se criou foi um ambiente. De maneira contraditória, o Brasil passou a permitir o aumento da população armada, o estímulo à violência e um ambiente de ódio nas redes. O projeto de lei chamado de PL das Fake News tem tudo a ver com esse desafio. Porque a desinformação permite o crescimento de um ambiente de violência, e nos últimos anos vimos uma verdadeira infodemia, uma enxurrada de desinformação e notícias falsas.

Na medida em que a humanidade evolui, nós temos novos desafios, novas possibilidades, e temos também obrigação e dever de fazer o trabalho parental de controle, da sociedade de fazer a regulação. Isso não pode ser simplesmente um campo aberto.

O Brasil tem um dever de casa para fazer, que é se debruçar profundamente sobre os dados para a construção de uma cultura de paz. Não só nas escolas, mas no país.

A pandemia piorou esse problema? Ela nos desafiou e trouxe fatores extras. Houve a privação do acesso a conteúdos, mas também a uma rede de proteção que a escola representa, da convivência. É óbvio que isso trouxe problemas de saúde mental que pioraram muito, mas este é um dado a mais. Estamos diante de um fenômeno que é multifatorial e precisamos entender a complexidade dele para propor soluções.

As autoridades não entenderam alguma coisa dessa complexidade? Acho que há um entendimento em níveis diferentes. Saí da reunião no Palácio do Planalto com os governadores [em 18 de abril] muito feliz em ver o governo federal chamar para si a situação e se colocar de maneira proativa. A Constituição é municipalista e descentralizadora, mas na educação também se fala em regime de colaboração. Não podemos abrir mão de um esforço tripartite no sentido dos governos, que envolve não só a educação, mas também as forças de segurança, a rede de proteção social. E precisamos também da sociedade civil, da família e da comunidade.

O que podemos aprender com a experiência de outros países? É natural que, quando ocorrem ataques, a primeira reação seja: vamos armar as escolas. Mas já aprendemos com outros países que colocar vigilância armada na escola, detector de metais na porta, não resolve. Eu sempre pergunto: e vão fazer o quê com o refeitório? Vamos tirar todas as facas, os vidros, as cadeiras? Porque qualquer coisa pode virar uma arma. Claro que precisamos ter batalhões escolares, que atuem no entorno da escola, aliados com inteligência policial. Mas temos de investir na prevenção.

A gente sabe que, em todos esses fenômenos, existem pré-condições e elas se assemelham às de outros países. Crianças que sofreram algum tipo de violência são mais propensas a se tornar agentes da violência, embora seja complexo determinar que será assim. Há ainda diferenças em cada país e cultura. Por isso é importante que a gente estude. Só assim poderemos responder sem achismos e voluntarismo.

Como fazer com que políticas nesse campo cheguem às escolas de fato? Precisamos formar, capacitar e empoderar professores e lideranças escolares. Muitas vezes os professores não têm o instrumental que lhes dê confiança para abordar determinados assuntos, identificar atos ou situações de pré-violência. Se não capacitá-los, não empoderá-los, será muito difícil.

Os pais estão com medo de levar os filhos à escola. Que tipo de diálogo é necessário fazer com as famílias para que o medo não se torne imobilizante? Precisamos ter confiança nas instituições. E, como família, sociedade, o dever de ajudar o estado na prevenção desses atos. A educação começa em casa e é preciso também educar para a cultura de paz, a convivência pacífica e o respeito à diversidade. Cada um tem que fazer sua parte. É normal que os pais tenham medo. Mas ao mesmo tempo coragem não é ausência do medo.


Marlova Jovchelovitch Noleto, 61

Diretora da Unesco no Brasil desde 2018, foi a primeira mulher a assumir o posto. Ingressou no sistema ONU no Brasil em 1997 como oficial de programas de políticas públicas e direitos da criança do Unicef. É mestre em serviço social pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), na qual lecionou por dez anos. Foi bolsista da Fundação Kellogs e da Eisenhower Exchange, aprofundando estudos sobre combate à pobreza, políticas sociais e educacionais e responsabilidade social. Já presidiu o Conselho Nacional de Assistência Social e atuou na antiga Febem (Fundação Estadual para o Bem-estar do Menor) no Rio Grande do Sul.

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