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Livro narra dramas e vitórias de cotistas negros nas universidades

Em 'Vidas Inteiras', jornalistas reconstituem os passos que levaram à aprovação da Lei de Cotas

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São Paulo

Teve festa na comunidade, com faixa de "parabéns" e tudo mais, quando Márcia Maria Cruz passou no vestibular, em 1994. No Morro do Papagaio, em Belo Horizonte, assim como em qualquer periferia do Brasil, chegar ao ensino superior era algo extraordinário, especialmente para famílias negras como a de Márcia. E aqui, vale frisar alguns dos significados de "extraordinário" no dicionário: que foge do usual ou ao previsto, fora do comum, inacreditável, esquisito, que foge do estabelecido.

E o estabelecido era que a universidade brasileira, em especial a universidade pública, se destinava a ricos e brancos, estudantes formados em escolas particulares.

Formada em escola pública, Márcia sempre foi estudiosa, e, por apenas meio ponto, não havia conseguido uma vaga na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Ela passou em primeiro lugar em uma universidade particular, a UniBH, e teve o primeiro semestre pago por uma italiana que nem a conhecia, colaboradora de movimentos sociais do morro. Para custear o restante, a jovem fazia dois estágios, um de manhã e outro à tarde, e, durante a noite, ainda era monitora do jornal laboratório do seu curso de jornalismo.

Márcia Maria Cruz, jornalista, doutora em comunicação pela UFMG e coautora do livro 'Vidas Inteiras', sobre os dez anos da Lei de Cotas nas universidades brasileiras - Iago Viana Souto/Divulgação

Márcia não conta essa sua história em seu novo livro, "Vidas Inteiras" (Crivo Editorial), sobre os dez anos da Lei de Cotas, que determina a reserva de 50% das vagas em universidades federais para estudantes de escolas públicas e, dentro desse número, um percentual para pretos, pardos e indígenas. Mas, ao reconstituir os percalços pela inclusão de pessoas negras no ensino superior brasileiro, Márcia está falando de si e de todas as pessoas pretas e pobres que os vestibulares deixavam de fora.

Aos 47 anos, ela é doutora em ciência política pela mesma Federal de Minas Gerais que não tinha vaga para ela na graduação. No mestrado em comunicação, na mesma instituição, passou em primeiro lugar. "Foi minha vingança", diz, bem-humorada.

Ela já foi professora em universidades, entre elas a PUC de Minas, e atuou nos principais periódicos mineiros. Até o ano passado, era coordenadora do Núcleo de Diversidade do jornal Estado de Minas, cargo que deixou para assumir a comunicação da deputada estadual Macaé Evaristo (PT-MG), prima da escritora Conceição Evaristo.

É cofundadora do coletivo Lena Santos, de jornalistas negras e negros de Minas –Lena foi âncora da TV Globo de Minas. Outros dois integrantes do coletivo assinam o livro com Márcia, e a diferença de idade entre cada um dos três autores é de uma década. Cada um deles viveu um momento diferente da busca por espaço nas universidades.

Vinicius Luiz, 37, jornalista e produtor de podcast, entrou sem cotas na UFMG, em 2005. À época, a discussão sobre as cotas ganhava força no país, mas ainda não havia a reserva de vagas –a lei só seria aprovada em 2012. Gabriel Araújo, 26, repórter de Interação e Redes Sociais da Folha e crítico de cinema, entrou na UFMG em 2015. Ele fez, portanto, parte das primeiras turmas de cotistas, as que mais enfrentaram preconceito.

Os jornalistas Vinicius Luiz e Gabriel Araújo, coautores do livro - Divulgação e Leo Fontes/Universo Produção/Divulgação

E o livro traz histórias de preconceito duríssimas contra cotistas pretos. Um estudante de pedagogia da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) conta que, como almoçava em restaurante popular e se sentava à mesa com moradores de rua, via na universidade pessoas limpando a maçaneta da porta logo depois de ele tocá-la.

Uma aluna de engenharia da UFPA (Universidade Federal do Pará) foi parada por colegas nos corredores, que disseram que ali não era o lugar dela e puxaram os dreads do seu cabelo até ela cair no chão. Professores perguntavam nas aulas, nos primeiros anos, quem havia entrado por cotas, e alunos de diferentes universidades relatam que até hoje são frequentemente barrados por seguranças, em meio a colegas brancos, e têm de apresentar a carteirinha para comprovar que são estudantes.

A carteirinha de estudante torna-se um passaporte, compara uma cotista, uma metáfora também para o crachá de jornalista do qual Márcia não podia desgrudar.

"Em várias situações, eu chegava para fazer uma entrevista e me perguntavam: ‘Cadê o repórter?’ Ou atendiam colegas que estavam ali e me ignoravam", conta. "Outros jornalistas não precisavam se apresentar e, para mim, pediam o crachá", relata.

"As pessoas não esperavam que eu, uma mulher negra, fosse jornalista, e sim empregada doméstica", afirma. "E sem demérito nenhum, minha avó foi doméstica. Mas eu digo como possibilidade de vida. As pessoas tinham dificuldade de entender que eu estava me colocando no lugar de uma mulher intelectual."

Ao longo da carreira, não faltaram tentativas de fazê-la se sentir inferior por ser mulher, negra, por ter nascido em uma comunidade.

"Mas sempre pensei que essas características, em vez de me tornar inferior, me potencializavam, porque a possibilidade de escrever desse lugar é muito rica."

Ela compara essa experiência à dos cotistas. "No início, queriam impor a esses estudantes um sentimento de inferioridade, de um lugar menos meritocrático, de uma capacidade menor", diz Márcia. "Mas houve um movimento de afirmação, de olhar para esse lugar com orgulho, e essa é a chave da transformação."

"Vidas Inteiras" narra a transformação da vida dos estudantes cotistas, de suas famílias, comunidades, da universidade. "O vestibular mede muito mais a preparação para a prova do que conhecimentos", avalia Márcia. "E as pessoas da periferia têm conhecimentos, saberes importantes. E, quando vão para a universidade pública, há um movimento de questionar o conhecimento produzido pela universidade, de debater até que ponto outros saberes são levados em conta na produção acadêmica."

Isso, em vez de reduzir a qualidade da universidade, como temem os contrários às cotas, "aumenta a qualidade, porque traz outro repertório".

"Muitos de nós que éramos objeto da produção científica passamos a ser sujeitos dela, e isso exige uma mudança da perspectiva, uma abertura a outros autores", ressalta.

"A universidade brasileira muda de cara e fica mais próxima do Brasil real", diz. Uma mudança extraordinária, no bom sentido.

Vidas Inteiras - Histórias dos 10 anos da Lei de Cotas

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