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Congresso Nacional

Ainda há espaço para aperfeiçoar a 'reforma da reforma' do ensino médio

Em um ambiente polarizado como o brasileiro, a aprovação do texto na Câmara não deixa de ser um avanço

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Alexandre Schneider

Pesquisador da FGV/DGPE, pesquisador do Transformative Learning Technologies Lab da Universidade Columbia, em Nova York, pesquisador do Centro de Economia e Política do Setor Público da FGV/SP e ex-secretário municipal de Educação de São Paulo

Passados 15 meses do início do governo Lula, a reforma do ensino médio avançou na Câmara dos Deputados com a aprovação do relatório do ex-ministro da educação Mendonça Filho. Uma decisão salomônica, que contemplou a demanda da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, dos movimentos sociais, instituições representativas dos estudantes e dos professores pela ampliação do número de horas dedicadas à Formação Geral Básica e a manutenção dos princípios da reforma de 2017, como defendiam o próprio ex-ministro, a organização Todos Pela Educação, as fundações privadas da área e o Conselho dos Secretários Estaduais de Educação.

Ainda há a possibilidade de alteração do texto a ser aprovado no Senado, mas, ao menos do ponto de vista político, o texto logrou aos campos em disputa sair do primeiro round em um "empate por pontos". Em um ambiente polarizado como o brasileiro não deixa de ser um avanço, e aqui fica o elogio a atuação do deputado Mendonça Filho.

Jovens carregam bandeiras e um grande faixa na qual se lê: revoga a reforma ou paramos o Brasil
Estudantes protestam contra o novo ensino médio na avenida Paulista, em São Paulo - Bruno Santos - 15.mar.2023/Folhapress

A reforma original previa a organização curricular formada por uma FGB (Formação Geral Básica) composta por 1.800 horas a serem cursadas por todos os estudantes ao longo dos três anos do ensino médio e 1.200 horas por itinerários formativos (disciplinas optativas) a serem escolhidas pelos estudantes de acordo com seus interesses, dentre o ensino técnico e quatro trilhas propedêuticas: (I) linguagens (língua portuguesa e suas literaturas; língua inglesa; artes e educação física); (II) matemática; (III) ciências da natureza (biologia, física e química); e (IV) ciências humanas e sociais aplicadas (filosofia, geografia, história e sociologia).

A reforma foi objeto de diversas críticas, no campo da política —por ter sido aprovada por medida provisória no governo Temer— e no campo pedagógico e de política educacional. O número pequeno de horas originalmente dedicado à FGB era insuficiente para a formação dos estudantes, problema agravado pelo fato de o Ministério da Educação não ter alterado o Exame Nacional do Ensino Médio, avaliação de acesso à universidade.

Enquanto as escolas privadas jogaram "na retranca", em geral reforçando a formação básica de seus estudantes, as escolas públicas reduziram a carga de disciplinas obrigatórias em detrimento das optativas, aprofundando o abismo entre os estudantes ricos e pobres. A reação, antes política, veio da escola, com estudantes e professores manifestando nos diversos fóruns e nas ruas seu descontentamento.

Na tentativa de cumprir a lei, secretários e secretárias de educação enfrentaram dificuldades de implantação por conta de seu desenho, e a corda estourou no elo mais fraco: estudantes com formação precária e professores assumindo disciplinas para as quais não tinham formação prévia.

Não à toa o número de ausências no Enem foi recorde, e pesquisas apontaram que os estudantes não concordaram com o novo modelo e não se sentiram seguros após cursá-lo. A ampliação da FGB de 1.800 para no mínimo 2.400 horas prevista na nova lei é uma medida acertada. Algumas redes estaduais, como a do Pará, já se organizaram desta forma, o que permitiu a ampliação da exposição dos estudantes a um currículo mais bem estruturado.

Em relação aos itinerários formativos, a lei de 2017 não previa um número mínimo de itinerários por escola nem que estes deveriam se organizar como um aprofundamento das áreas de conhecimento, o que gerou um número elevado de trilhas nas escolas públicas, que não colaboravam para o aprofundamento dos estudantes de acordo com seus interesses. Também é acertada a indicação na nova lei de que os itinerários devem servir ao aprofundamento nas áreas do conhecimento.

A lei deve seguir ao Senado e há espaço para aperfeiçoamento. Um ponto importante está na própria organização do currículo por "área de conhecimento", ao invés dos componentes curriculares, as antigas disciplinas. O Brasil não forma professores em "Ciências Naturais", "Ciências Exatas" ou "Ciências Humanas". Há um erro nesse tipo de organização, baseado na crença de que a mesma promoveria a interdisciplinaridade.

A interdisciplinaridade não se dá no desenho do currículo, mas como projeto pedagógico, ou o que chamamos na educação de "currículo em ação". Soa estranho, inclusive, delimitar projetos interdisciplinares por áreas do conhecimento. Será que professores de literatura, física, geografia e história não podem montar um projeto conjunto a partir da leitura de "Vidas Secas", garantindo os direitos de aprendizagem constantes no currículo?

Sem avançar em outros princípios pedagógicos, temo que a organização por áreas de conhecimento "acerte o que não viu": seja uma possibilidade de arranjo no caso de falta de professores em componentes específicos, prejudicando os estudantes. Em outras palavras: a organização do currículo pode se dar a partir do número de professores habilitados na rede e não o contrário.

Destacaria outros dois pontos de melhoria. A retirada do dispositivo que prevê o reconhecimento de atividades realizadas individualmente (trabalho voluntário, estágios e outros) fora da escola como parte das atividades de tempo integral (com exceção do ensino técnico), para que não se abra a possibilidade de simular matrículas de tempo integral. E a previsão de como contemplar a Educação de Jovens e Adultos, que não é passível de organização de acordo com o projeto atual, uma vez que essa modalidade é organizada em geral no período noturno.

As políticas públicas não se desenham em ambiente neutro e são resultantes da interação de múltiplas forças e agendas em disputa. Uma reforma educacional não ocorre em poucos anos, como nos ensinam as reformas em outros países. A "reforma da Reforma do Ensino Médio" não é perfeita, deve ser aperfeiçoada e talvez seja objeto de outros ajustes no futuro, mas nesse momento é a reforma possível. Sigamos adiante.

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