RS deverá ter escolas de campanha nas cidades mais afetadas

Secretária da Educação relata planos de reconstrução diante de uma tragédia em que, em alguns municípios, chega a 60% o número de professores que perderam a casa

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São Paulo

O governo do Rio Grande do Sul deverá montar escolas de campanha nas cidades mais afetadas pelas enchentes. A informação foi dada pela secretária da Educação do Estado, Raquel Teixeira, em entrevista à Folha.

Até a tarde de quarta-feira (15), pelos cálculos da pasta, 1.056 escolas do estado seguiam afetadas pelas enchentes. O número representa cerca de 55% das 2.340 escolas da rede de ensino gaúcha. São mais de 378 mil estudantes afetados, mais da metade do total. Desses, 260 mil ainda estão sem aulas, sendo que, para cerca de 212 mil não há previsão de retorno.

"Nas cidades que foram mais afetadas, algumas delas completamente destruídas, não temos como alugar espaços para colocar os alunos para as aulas, não tem uma igreja para usar como escola", afirmou a secretária da Educação. "Vamos ter que pensar em escolas de campanha, como construir isso rapidamente, se elas serão de lona ou de outro material. Estamos discutindo isso neste momento", disse a secretária.

Entre as cidades mencionadas por Raquel Teixeira estão Eldorado do Sul, Roca Sales, Lajeado, Encantado, Estrela e Cachoeirinha. Em alguns municípios da região do Vale do Taquari, como Muçum, escolas que foram destruídas nesta enchente haviam acabado de ser reconstruídas após a destruição causada pelas cheias de setembro de 2023.

Destruição das enchentes na escola Comendador Ismael Chaves Barcelos, no município de Guaíba, no RS - Anselmo Cunha/Folhapress

O cálculo de unidades afetadas feito pela secretaria tem como base um boletim eletrônico preenchido duas vezes por dia pelos diretores. Inclui as escolas totalmente destruídas, as que tiveram prejuízos parciais, bem como aquelas que não sofreram inundações mas se transformaram em abrigo para quem perdeu a casa (são 88) ou estão sem acesso em razão dos alagamentos e dos danos em ruas, estradas e pontes.

Dos 750 mil estudantes da rede pública, por volta de 490 mil retornaram às aulas em cerca de 1.300 escolas. A maioria é de regiões não atingidas pelas enchentes. "E, mesmo nessas escolas, eu não diria que as aulas estão normais", afirmou a secretária. "Estão todos profundamente abalados com a situação do estado, então as escolas estão voltadas à reflexão sobre tudo isso, ao acolhimento, a atividades como escrever cartinhas para aqueles estudantes que foram afetados pelas enchentes", explica.

A secretária concedeu a entrevista à Folha por videoconferência de sua casa, em Porto Alegre, onde passou a trabalhar remotamente e está sem água desde o dia 6. "Se você quiser saber como tomar banho com uma bacia bem pequena de água e ficar limpinha, me pergunte, que estou craque", diz, tentando manter o bom humor.

A sede da secretaria da Educação foi alagada, a exemplo do Palácio do Governo, e parte dos funcionários está trabalhando em um espaço cedido pela Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), na capital.

SEM ENDEREÇO

Dentre os mais afetados, temos 212 mil alunos que não sabemos quando voltarão às aulas. Não estamos conseguindo nem encontrá-los, são de regiões destruídas. Os mecanismos de busca ativa que tínhamos não funcionam nessa situação. Porque a busca implica em você ter o endereço do aluno, o celular dos pais. Não temos mais essas informações, e as pessoas não moram mais em seus endereços.

Perdemos escolas inteiras, com todos os documentos e dados. Estamos regulamentando com o Ministério Público, o Tribunal de Contas e o Conselho Estadual de Educação uma autorização para que os alunos não precisem da documentação escolar em casos, por exemplo, de transferência.

Nas cidades mais afetadas não só as escolas foram destruídas, mas também as casas dos professores, dos funcionários, dos alunos. Calculamos que, na rede toda, 30% dos professores perderam a casa. Em alguns municípios, o número chega a 60%.

Vamos ter que descobrir novas formas de fazer busca ativa, de ajudar os professores a reconstruir suas casas. Essa é a grande diferença da crise da Covid. Naquela época, os alunos e os professores não iam para as escolas, mas sabíamos onde estavam. Agora não sabemos, nem temos como calcular o impacto material e emocional nas escolas.

A decisão sobre o retorno às aulas tem a ver com a infraestrutura da escola, mas também com as condições dos professores, do ponto de vista prático e emocional.

SEM CONDIÇÕES

"E o impacto emocional é muito grande. Há uns dias, liguei para o diretor de uma escola em Canoas, para perguntar se a gente podia usar a escola dele para fazer um abrigo. Ele desabou a chorar e me disse: "Eu perdi minha casa, toda a equipe diretiva da escola perdeu a casa. Estamos tentando nos levantar. Não temos condições."

Encontrei com uma diretora de uma escola de Eldorado que perdeu a casa sendo voluntária em um colégio de Porto Alegre transformado em abrigo, ela fazia contação de histórias para crianças abrigadas e me falou: "Tudo o que trabalhei na vida foi para comprar aquela casa. Mas o pior foi que perdi todas as fotos da minha mãe, do meu pai, dos meus filhos quando pequenos, perdi a minha memória. Eu não perdi uma casa, perdi a minha vida." Como vai estar o estado mental dessa professora quando retomarem as aulas normalmente, com ela exausta por tudo o que passou?

SEM PSICÓLOGOS

A saúde mental tem implicações diretas no aprendizado. Há na secretaria um núcleo de cuidado e bem estar escolar, mas só com 20 psicólogos. Estou pedindo mais 150. As escolas não têm psicólogos, nem as coordenadorias pedagógicas, isso terá que mudar.

A gente tem apoio de voluntários que trabalham a pedagogia da emergência, é o mesmo grupo que trabalhou em Brumadinho, no Haiti, e que havia nos apoiado em setembro nas enchentes do Vale do Taquari. E eles fazem formação com professores.

Temos psicólogos de São Paulo que estão fazendo acolhimento com os técnicos da secretaria e com os coordenadores regionais da educação, porque precisamos fortalecer as lideranças, para que fortaleçam os diretores. E temos um trabalho com o Instituto Ayrton Senna, de habilidades socioemocionais. Há muitos voluntários, e estou tentando organizar para definir uma política e não apenas ações eventuais e pontuais.

SEM INTERNET

Nosso objetivo zero é ter 100% dos alunos em aulas presenciais. Vamos chegar a isso, mas em diferentes tempos. Teremos que ser flexíveis em alguns casos e usar o ensino híbrido. Há situações em que a escola está pronta para voltar, os professores podem voltar, mas há alunos que não conseguem chegar porque a estrada ainda não foi reconstruída. E esse aluno não tem internet em casa, então estamos instalando antenas para que possa haver aulas híbridas, ou seja, remotas e presenciais.

SEM CALENDÁRIO

Cada escola terá um calendário diferente, dependendo de quando conseguir retomar. Não estamos mais falando de um ano escolar 2024. Vamos ter que ter atividades, calendários e currículos quase que customizados para cada escola. O Conselho Nacional de Educação flexibilizou os dias letivos para o RS. Em algumas escolas, faremos o ano contínuo 2024/2025; quando o conteúdo deste ano acabar, começam o do próximo ano. Não vou cancelar as férias e sacrificar ainda mais os professores.

SEM IGUALDADE

Tudo é discutido em um grupo com o Conselho de Educação e o Ministério Público, entre outros órgãos, porque agora há essa comoção, mas, daqui a uns anos, alguém questiona por que a escola virou abrigo e não deu aula. Esse debate, aliás, já acontece.

Dez escolas particulares de Porto Alegre viraram abrigos, e há pais querendo a volta das aulas. Os diretores acham que não tem como expulsar as pessoas vulneráveis, e tem pai falando: "Eu pago, quero aula para o meu filho, o abrigado não paga".

A secretária estadual da Educação do Rio Grande do Sul, Raquel Teixeira - Bruno Santos/Folhapress
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