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Luciano Gurgel e Tatiana Schor

Negócios sociais e a questão da Amazônia

Uma bolsa de couro de pirarucu é vendida por R$ 5.000 na Oscar Freire, enquanto o pescador recebe R$ 4 pelo quilo: não é assim que manteremos a floresta em pé

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Luciano Gurgel Tatiana Schor

Muito se falou sobre a Amazônia nos últimos meses. Fomos todos expostos a fotos que sensibilizaram o mais incrédulo dos negacionistas acerca do drama ambiental que vive a região.

Essa fase passou. E chegou o tempo de avaliarmos a questão com a serenidade e a profundidade que merece visando pensarmos propostas concretas de ação visando a solução de ao menos parte dos problemas.

Uma visão equivocada acredita que a Amazônia é um espaço selvagem, de pouca presença e de pouca interação do homem com o espaço. Muito pelo contrário. Entender a presença humana na região e como sua relação com a paisagem amazônica se processa é chave para pensarmos em soluções socioambientais duradouras para a região.

Um ator humano fundamental quando se pensa em Amazônia são os indígenas. A maioria dos grupos indígenas do Brasil vive na Amazônia. De acordo com o IBGE, essa é uma população de mais de 300 mil indivíduos.

Essa população indígena vive sob proteção das políticas públicas e de Estado que visam a proteção e preservação do seu modo de vida tradicional. Cabe à sociedade civil exercer pressão sobre os poderes públicos para que as políticas indígenas sejam as mais adequadas.

Outro grupo importante no contexto amazônico é o ribeirinho. População que habita o bioma em especial ao longo dos rios e igarapés. Originária de diversas regiões do nordeste brasileiro, herdeira das tradições luso e afro-brasileiras e indígenas.

 
Pesca do pirarucu em território amazônico
Pesca do pirarucu em território amazônico - Adriano Gambarini/OPAN/Divulgação

Ao longo do tempo sua interação com o espaço físico tornou-o um especialista no convívio com a floresta e com a planície amazônica, com conhecimento profundo dos rios e dos recursos florestais dos quais seu modo de vida depende.

Ao longo dos séculos o ribeirinho desenvolveu a habilidade de transformar o seu conhecimento numa ferramenta de sobrevivência a partir da interação com a paisagem amazônica, seja por meio das culturas de subsistência seja através da comercialização de produtos extraídos da região.

Compreender estes processos produtivos dos ribeirinhos, mas também suas demandas por serviços urbanos tais como educação, saúde e acesso a  produtos não produzidos localmente, é crucial para encaminhar soluções que garantam a qualidade de vida e a prosperidade destas populações nativas.   

E por que falamos das populações da Amazônia no contexto de uma crise ambiental como a recentemente verificada?

Porque a crise ambiental não se soluciona sem se endereçar a crise social que existe no contexto.

É consenso entre cientistas e especialistas em Amazônia que a chave para se resolver a crise ambiental é manter a população nativa na região. É imprescindível conferir a ela condições dignas de viver uma vida sem pobreza, sem doenças curáveis e, assim, assegurar a elas o direito inato de explorar de forma sustentável a Floresta que é ao mesmo tempo seu habitat e modo de vida.

Há mais de 50 espécies de abelhas nativas, produtos florestais não madeireiros com potencialidades ainda não totalmente conhecida, uma diversidade de peixes, castanhas, essências, princípios ativos para a indústria farmacêutica e outros produtos que se mantidos e fortalecidos no bioma criam valores econômicos e sociais que ainda hoje não sabemos mensurar.

A manutenção do homem nativo na Amazônia, em condições prósperas e sustentáveis, passa pela percepção econômica de que a manutenção ecossistêmica do bioma é mais rentável do que a transformação do mesmo em um sistema de produção exógeno à região. As cadeias produtivas locais têm potencial de produtos de valor agregado muito mais alto do que a soja, por exemplo.

Mas a realidade da Amazônia está bem distante disso. Para além das queimadas, as questões sociais são prementes na região: baixo índice de acesso ao saneamento básico e de alfabetização, altos índices de desnutrição infantil.

No bioma amazônico se encontram os piores IDH municipais, as mais altas taxas de doenças tropicais, as mais baixas taxas de escolaridade e os piores indicadores de qualidade da educação do Brasil.

O acesso à medicina moderna é inexistente e as taxas de gravidez em meninas entre 10 e 14 anos permanecem altas e inalteradas há décadas, enquanto no resto do país decrescem.

A pobreza não só se mantém, ela infelizmente piora.

Questões relacionadas à logística e às dificuldades de processamento de produtos na região criaram, ao longo dos séculos, formas de relações sociais perversas. O antropólogo Marcio Meira ao estudar as populações indígenas do noroeste amazônico define, em seu livro “A Persistência do Aviamento” (2009), o aviamento como um sistema de trocas no qual os "compradores" externos adiantam mercadorias, como café e açúcar, aos "vendedores" indígenas e ribeirinhos que as pagam com produtos extrativistas como por exemplo borracha, peixes e juta.

Cria-se uma relação de dívida e uma organização social na qual os produtores locais, sejam eles indígenas ou ribeirinhos, passam a dever aos "patrões". É o sistema da escravidão por dívida. O aviamento é, entre outros fatores, uma importante causa da persistência da pobreza na região.

Como então fortalecer essa percepção de valor nas cadeias produtivas originárias e driblar práticas centenárias que condenam gerações de mulheres e homens da região à miséria?

Há uma paralelo interessante num país muito distante da Amazônia. E essa história começou há mais de 40 anos.

O Nobel da Paz Muhammad Yunus, economista de Bangladesh, um dos países de pior IDH, ensinou ao mundo que o crédito tem poder transformacional nas vidas de pequenos empreendedores pobres.

E os negócios sociais podem, definitivamente, ser um dos caminhos para a solução desses problemas.

Num próximo artigo exploraremos com mais detalhes como o professor Yunus encaminhou algumas soluções para problemas sociais complexos em Bangladesh. E que tipo de associação poder haver entre as duas realidades.

Luciano Gurgel

Bacharel em economia pela Universidade de São Paulo (USP), foi diretor de investimentos da Yunus Negócios Sociais e é diretor-executivo da Artemisia

Tatiana Schor

Secretária Executiva de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado do Amazonas. É professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas.

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