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Cláudia Werneck e Pedro Prata

Trabalho inclusivo é o novo normal

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Cláudia Werneck

Jornalista e fundadora da ONG Escola de Gente, é autora de 14 livros sobre direitos humanos, diversidade e inclusão para crianças e adultos

Pedro Prata

É mestre em comunicação e coordenador-geral da Escola de Gente.

O mundo e o Brasil pós-pandemia trazem desafios contundentes à garantia de direitos com equidade no acesso à informação, comunicação, liberdade de expressão e participação democrática.

Os agravos atingem principalmente populações já estigmatizadas e excluídas da formulação e da implementação de políticas públicas e das práticas cotidianas de justiça social. É o caso de pessoas com deficiência.

Ainda que nas últimas décadas a sociedade brasileira tenha acompanhado o avanço jurídico e legislativo em relação a populações vulnerabilizadas, os tempos atuais exigem atenção redobrada. A mesma pandemia que viu eclodir debates fundamentais relacionados a questões étnico-raciais e de gênero, por exemplo, apontou para a resistência ou a dificuldade que especialistas em inclusão e diversidade têm em considerar a acessibilidade, especificamente a acessibilidade comunicacional, um eixo estruturante para a prática do trabalho inclusivo.

A oferta de acessibilidade comunicacional —e outras— já era indispensável para o acesso, a permanência e a evolução de qualquer carreira no mundo presencial, e não apenas para pessoas com deficiência. Mas adotá-la como medida prioritária nos orçamentos públicos e privados, não.

Com o agravamento da pandemia, a acessibilidade comunicacional deixa de ser opcional ou adiável. Assim como um dia aconteceu com os banheiros femininos, a acessibilidade veio para ficar. A meta nem é tão ousada. O objetivo é impedir retrocesso de direitos já conquistados, mesmo que tenham sido devidamente implementados.

Toda a trajetória de formulação e disseminação de estratégias e mecanismos para garantir equidade, especificamente no contexto da diversidade, foi bruscamente interrompida, tanto pela conjuntura política e econômica nacional quanto pelo isolamento imposto pela Covid-19, que alterou radicalmente a interação social e dificultou o acesso a direitos, como o direito ao trabalho.

O conceito de trabalho digno remete à saúde e à vida. É na amplidão do direito ao trabalho que as exclusões não enfrentadas e não resolvidas no decorrer da existência se encontram, como se o ambiente laboral fosse o espaço onde, independentemente de qualquer ameaça ou conflito, residisse a última esperança.

É nessa perspectiva que o trabalho digno e justo simboliza a vida e a saúde plenas. Acessá-lo, desfrutá-lo e contribuir para que se torne de fato inclusivo é um exercício indispensável, capaz de reconciliar as pessoas com as suas sociedades, ainda que suas vidas tenham sido desprovidas de múltiplos direitos desde o nascimento e apesar de suas dores existenciais.

O trabalho digno tem essa força, e missão. Esta análise se fortalece e se expande diante do entendimento de que, no Brasil, o universo do trabalho passa por sua transformação mais radical em décadas. São questões abundantes e plurais que impõem às instituições do Estado, às organizações da sociedade civil e às empresas a lidar com prejuízos e oportunidades inusitadas.

Os dilemas são complexos. Por um lado, há uma tentativa de relativização de direitos que pareciam consolidados. Voltamos, por exemplo, a discutir o que é escravidão e que punição deve ser aplicada a quem escraviza.

Por outro, há uma inédita ascensão de grupos silenciados por séculos que agora, com muita propriedade, revelam a urgência da democratização de espaços de poder e representatividade nos ambientes laborais. No entanto, mesmo no contexto desse múltiplo conjunto de quem fala por si, pessoas com deficiência continuam excluídas.

Não se trata, portanto, de uma abordagem inclusiva. A inclusão é um conceito sistêmico, orgânico e indivisível. Não admite inserções fracionadas ou hierarquizadas por tipo de diferença humana. Nos ambientes laborais, pouco se estuda e se aplica o conceito de trabalho inclusivo. As articulações, lutas e movimentos associativos nos ambientes laborais tendem a ser segmentados por tipo de diversidade e, consequentemente, se traduzem na ascensão desigual dos temas.

Falta interseccionalidade e disposição para implementar processos bem estruturados o suficiente para contemplar as desigualdades e as diferenças múltiplas, sem restrições. Com o agravamento da pandemia, por falta de acessibilidade no mundo virtual, as perspectivas e as possibilidades de autonomia e emancipação de pessoas com deficiência foram subitamente ainda mais reduzidas.

A Covid-19 não inventou a exclusão no online, mas potencializou seus riscos e danos. Hoje, grupos historicamente excluídos por barreiras de comunicação têm sua situação potencializada por no mínimo por três razões: 1) a internet raramente oferece língua de sinais, legendagem e audiodescrição de maneira simultânea;

2) a produção de conteúdo considerada "de uso comum" está longe de ser compreensível para toda a população —pesquisas da Universidade de Hamburgo mostram que na Áustria e na Alemanha 40% da população não tem capacidade cognitiva de interpretar plenamente uma notícia de jornal, ainda que sejam populações com altíssimo índice de alfabetização;

3) se, de acordo com a ONU, cerca de 80% da população com deficiência no mundo vive na pobreza em regiões como a América Latina, dificilmente essa parcela da sociedade terá acesso à internet de qualidade, por celular ou por rede fixa domiciliar. Dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil atestam que 58% dos brasileiros usuários de internet não usam computador e 26% não têm acesso à rede.

As perguntas são infindáveis. Como as corporações estão se preparando para o trabalho inclusivo no pós-pandemia? As plataformas utilizadas no teletrabalho para reuniões e interação virtual disponibilizam língua de sinais, legenda e audiodescrição?

Quais empresas de fato se interessam em conhecer as possibilidades de contribuição de pessoas com deficiência se, com frequência, respiraram aliviadas com a possibilidade de trabalharem em casa como desdobramento da pandemia?

Além das perguntas, as armadilhas também são infindáveis. Uma delas é acreditar que existe incompatibilidade entre utilizar uma linguagem mais simples para quem tem o intelecto funcionando em outro ritmo quando o mais importante é resolver a angústia e o desconforto por uma internet lenta nos home offices.

De tudo, fica a certeza de que a combinação da falta de acessibilidade comunicacional com a falta de banda larga em casa —que é o caso da maior parte da população com deficiência no Brasil— faz do isolamento uma condição de sofrimento psicológico e um risco sem precedentes à vida.

A relação entre pobreza e deficiência, que já era dramática, tende a se agravar neste “novo normal”.

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