Descrição de chapéu The New York Times Família

Crianças não brancas têm suas dores negligenciadas com mais frequência

Especialistas orientam registrar queixa caso seus filhos não recebam atendimento adequado

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Rachel Rabkin Peachman
The New York Times

Judith McClellan é assistente social, vive em Salisbury, Carolina do Norte (EUA), e sabe bem como é ver sua filha sofrendo dor. Kyarra, 15 anos, tem anemia falciforme, uma doença hereditária que afeta mais comumente pessoas negras e frequentemente provoca dor tão lancinante que requer o uso de opióides em emergências.

McClellan contou que quando Kyarra era menor, ela descrevia a dor –causada por obstruções nos vasos sanguíneos— como "uma faca de açougueiro me apunhalando mil vezes no mesmo lugar".

A assistente social disse que em momentos de sofrimento maior, "o protocolo é irmos ao hospital mais próximo" para receber analgésicos potentes que mitiguem o desconforto de Kyarra até a crise passar. Mas, pelo fato de os McClellan, que são negros, viverem a uma hora e meia de distância do hematologista que atende Kyarra, frequentemente acabam indo para setores de emergência hospitalar onde os médicos não os conhecem e muitas vezes questionam a dor sentida por Kyarra.

Ilustração de criança negra sentada em tons de roxo
Dores de crianças não brancas são frequentemente ignoradas - Mikyung Lee/The New York Times

"Se ela fala que está com dor no nível oito –porque não está gritando--, eles questionam: ‘Tem certeza que é um oito? Ou será que você não está fingindo que é oito para receber mais remédio contra dor?’", contou a mãe. "Às vezes penso que eles acham que ela está querendo se drogar."

Andrew Campbell, diretor do Programa Amplo de Anemia Falciforme no Children’s National Hospital, em Washington, disse que médicos que não entendem uma condição como a anemia falciforme, caracterizada pela dor forte, frequentemente caracterizam incorretamente crianças negras, e especialmente adolescentes, como "pessoas que procuram drogas" ou que "abusam de opiáceos". Ele disse também que existe "um elemento potencial de racismo" que pode levar a essa caracterização.

No ano passado, em um departamento de emergência de um hospital UNC em Chapel Hill, Carolina do Norte, um médico denunciou McClellan aos Serviços de Proteção Infantil porque achou preocupante que Kyarra recebera 30 receitas de opiáceos de nove médicos diferentes na Carolina do Norte nos 12 meses anteriores. Era demais, na opinião dele.

A assistente social contou que, quando explicou ao médico que as receitas para Kyarra eram necessárias e estavam de acordo com as diretrizes de prescrição, ele respondeu: "Se você não estiver escondendo nada, dará tudo certo".

Perguntado sobre o incidente, Alan Wolf, porta-voz da UNC Health, disse que "a legislação da Carolina do Norte exige que os hospitais denunciem suspeitas de negligência ou abuso infantil". No final a agência decidiu não levar a denúncia adiante, disse McClellan, "porque não se enquadrava nos critérios de negligência ou abuso".

Um tema que se repete sempre

Emily Hartford, professora assistente de medicina pediátrica de emergência na Universidade de Washington e estudiosa de como as diferenças de atendimento prestado podem afetar crianças, disse que o caso de Kyarra faz parte "de um tema que estamos começando a ver repetir-se na literatura médica".

Em junho, por exemplo, Hartford e seus colegas publicaram no periódico especializado Academic Emergency Medicine um estudo que analisou as fichas médicas de 833 adolescentes de 12 a 16 anos que procuraram o departamento de emergência do hospital Seattle Children’s entre 2016 e 2020 com enxaqueca.

Descobriram que as crianças negras, asiáticas, hispânicas ou que preferiram falar em uma língua diferente do inglês tiveram menos probabilidade que crianças brancas de receber analgésicos intravenosos fortes, apesar de relatarem níveis de dor semelhantes.

Essa descoberta coincide com pesquisas anteriores, disse Hartford, segundo as quais quando crianças não negras procuram departamentos de emergência com problemas como fraturas ósseas ou apendicite, têm menos chance que crianças brancas de receberem analgésicos apropriados, como opiáceos. Muitos estudos já constataram variações semelhantes no tratamento da dor entre adultos não brancos.

"Gostaríamos que não houvesse diferenças por etnia e línguas", disse Hartford. "Mas precisamos trazer essas diferenças à tona. É o primeiro passo para combatê-las."

Por que o tratamento é diferenciado

A dor é algo subjetivo, difícil de medir e frequentemente invisível. E em crianças, ainda mais que em adultos, frequentemente é incompreendida, insuficientemente tratada e menosprezada, fato já revelado em pesquisas.

Mas o tratamento pode ser ainda pior no caso das crianças não brancas. Ron Wyatt, membro sênior do Institute for Healthcare Improvement, em Madison, Alabama, destacou que ideias falsas sobre diferenças biológicas entre negros e brancos –ideias essas que datam dos tempos da escravidão— tiveram efeitos duradouros sobre o tratamento dado a pessoas não brancas em ambientes médicos.

Por exemplo, como parte de um estudo frequentemente citado, publicado em 2016 na Proceedings of the National Academy of Sciences, pesquisadores da Universidade da Virginia investigaram 222 estudantes e médicos residentes brancos e descobriu que mais de um terço deles acreditava que pessoas negras têm pele mais espessa que pessoas brancas. E 7% acreditavam que as terminações nervosas das pessoas negras são menos sensíveis que as de pessoas brancas. Os participantes que tinham essas ideias errôneas faziam recomendações menos adequadas sobre tratamentos contra dor.

Lisa Cooper, professora de medicina na Johns Hopkins University e diretora do Centro de Equidade em Saúde da universidade, descobriu em suas próprias pesquisas que, quanto maior é o viés implícito (ou inconsciente) de médicos brancos, pior é sua comunicação com pacientes negros.

Um de seus estudos constatou que médicos brancos dominam as conversas mais com pacientes negros que com pacientes brancos, aumentando as chances de as preocupações dos pacientes negros não serem ouvidas e seus problemas médicos e sua dor ficarem sem tratamento. "É uma questão de segurança, sem dúvida alguma", disse Cooper.

Cristina Gonzalez, professora de medicina no Albert Einstein College of Medicine, em Nova York, ensina médicos a reconhecer e administrar seus vieses implícitos. Ela se recordou de um caso, anos atrás, em que um paciente hispânico jovem chegou ao hospital queixando-se de dores fortes. Um membro da equipe médica comentou: "Acho que ele não está com dor de fato". O paciente acabou sendo diagnosticado com infecção da vesícula, disse Gonzalez. Mas as dúvidas poderiam ter adiado seu tratamento e causado danos que colocassem sua vida em risco.

"Adiar atendimento médico tem efeitos importantes para a saúde mais para frente", ela comentou.

O que você pode fazer para melhorar a dor de seu filho?

Especialistas destacam que não deve ser responsabilidade dos pacientes melhorar o atendimento que recebem. Nos últimos anos vem sendo feito um esforço de pesquisadores, hospitais e legisladores para ajudar os profissionais médicos a tomar mais consciência de seus vieses –que todo o mundo possui— e mudar seu comportamento de acordo.

"Mas essas coisas levam tempo", disse Wyatt. Enquanto isso, há estratégias que podem ajudar os pais no hospital:

Registre tudo. Anote os medicamentos de seu filho, seus sintomas e os dados de contato do pediatra. Transmita essas informações aos médicos e enfermeiros. Isso vai ajudá-los a avaliar mais rapidamente o tipo de assistência que seu filho necessita. Isso é especialmente útil se seu filho tem um problema crônico e toma medicamentos regularmente.

Conheça os profissionais do hospital. Vanessa Finch, de Fort Lauderdale, Flórida, cujo filho Kahleeb Beckett morreu aos 24 anos durante uma crise de anemia falciforme no hospital, disse que quando Kahleeb era pequeno ela encontrou maneiras de aproximar-se dos profissionais do hospital.

"Eu trabalhava como voluntária. Fiquei amiga das assistentes sociais. Vivia conversando com os médicos. Tudo isso faz uma diferença", ela comentou. Ela descobriu que quando os médicos e enfermeiros sentiam uma ligação mais pessoal com seu filho, que era negro, demonstravam mais empatia em relação à dor dele.

Procure aliviar a ansiedade de seu filho. Estudos revelam uma ligação estreita entre ansiedade e dor, e algumas táticas simples podem ajudar a reduzir a ansiedade e diminuir a percepção de dor. Você pode pedir a seu filho para imaginar um lugar favorito, ouvir um exercício de imaginação guiada ou lhe propor coisas que distraiam sua atenção, como música ou um vídeo. Pode usar essas estratégias enquanto vocês aguardam o atendimento.

Respire fundo. "Sabemos que a aflição sentida pelos pais diante da dor de seu filho no setor de emergência realmente impacta como seu filho vivencia a dor e como ele reage ao tratamento", disse Emily Law, autora de um estudo recente sobre tratamento de enxaqueca em adolescentes e professora de anestesiologia na Universidade de Washington.

Portanto, faça o que puder para se conservar calmo, quer seja fazer respirações fundas ou sair da sala de exames para telefonar a uma amiga para pedir apoio.

Se for preciso, registre uma queixa. Se você sentir que seu filho não foi atendido corretamente, peça para falar com uma assistente social do hospital ou escreva uma queixa para cobrar responsabilidade do hospital.

Tradução de Clara Allain

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