Descrição de chapéu
Financial Times Viver

Precisamos redescobrir a arte de não fazer algumas coisas

Pensar naquilo que podemos nos abster pode ser positivo para atingir objetivos, além de empoderador

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Jemima Kelly
Financial Times

Alguns de vocês devem saber que há pouco tempo começou a quaresma, a fase litúrgica que muitos cristãos celebram –ou sofrem— no período que antecede a Páscoa. A quaresma celebra os 40 dias e noites que Jesus passou jejuando no deserto e sendo tentado pelo diabo.

Fui criada por um pai irlandês católico devoto e que frequentou uma escola de freiras, e me sinto culpada se não observo o período da quaresma pelo menos me esforçando para abrir mão de algum tipo de prazer ou vício terreno, como muitos cristãos são encorajados a fazer, ao lado de dois outros pilares do momento: orar e dar esmolas. E tenho certeza que alguns de vocês também vão abrir mão de prazeres neste época –chocolate, álcool ou quem sabe o Twitter--, mesmo que não tenham fé ou passado cristão, por motivos de autodisciplina, saúde ou simples sanidade mental.

Mulher na praia
Pensar nas coisas que podemos deixar de fazer pode ser positivo para conquistar objetivos - Adobe Stock

Mas somos um grupo que vem encolhendo rapidamente. Uma sondagem feita pelo YouGov esta semana e compartilhada com o Financial Times sugere que este ano apenas um em cada 20 britânicos vai abrir mão de alguma coisa na quaresma (embora uma sondagem separada sugira que oito em cada dez curtiram com prazer a tradição do Dia das Panquecas, celebrada na terça-feira anterior ao início do período de abstinência).

A última vez que a empresa fez a mesma sondagem, em 2012, um em cada dez britânicos abriria mão de alguma coisa na quaresma. Mesmo na América, país tão temente a Deus, sondagens sugerem que apenas uma em cada seis pessoas –e menos de metade dos católicos americanos— participam, embora sete em cada dez americanos festejem a Páscoa, muitas vezes com o consumo de grande quantidade de chocolate.

Uma parcela maior de pessoas –uma em cada cinco— costumam fazer resoluções de Ano Novo, mas estas geralmente são voltadas a fazer coisas ativamente, como "praticar mais exercício físico" ou "fazer uma alimentação mais sadia". Já na quaresma, o foco explícito é sobre a abstenção.

Em um mundo movido pelas forças gêmeas do consumismo e da produtividade, das possibilidades ilimitadas e do excesso interminável, parece que nos esquecemos da arte de não fazer coisas e perdemos de vista seu valor. Nós nos perguntamos frequentemente "o que consegui fazer hoje?", mas muito mais raramente indagamos "o que consegui deixar de fazer hoje?"

No entanto, deixar de fazer pode ser mais importante e muito mais empoderador. Lançar pesos ou caminhar longas distâncias podem ser sentidos como modos empoderadores de deslanchar um programa de perda de peso, mas pesquisas sugerem que modificar nossa dieta –falando francamente, comer menos— é uma maneira muito mais eficaz que o exercício físico para se livrar dos quilos indesejados. Investir um pouco de dinheiro num fundo de índice de baixo risco pode ser uma boa maneira de poupar dinheiro para comprar uma casa, mas deixar de perder dinheiro com jogos de azar é ainda melhor.

E não é apenas na área do desenvolvimento pessoal que deveríamos pensar em valorizar mais a ausência de coisas. Isso também é importante na política. Um líder maçante, pouco carismático e que não propõe novas ideias é melhor que um narcisista carismático com muitas ideias perigosas.

A ideia de pensar mais sobre o que devemos deixar de fazer, em vez de enfocar o que devemos fazer, também pode ser aplicada a outras áreas. No campo da diversidade e inclusividade, por exemplo, tomar a decisão ativa de não excluir nenhum grupo desfavorecido –contratando às cegas e garantindo que as pessoas não se sintam social ou culturalmente excluídas— pode ter mais impacto do que tentar incluir todos os grupos rigorosamente, um esforço que nunca será inteiramente realizado, dado que existem infinitas maneiras de dividir e subdividir grupos desfavorecidos.

Em nossa cultura eternamente ativa, parece que nos preocupamos mais em tentar preencher nossas agendas que em criar espaço nelas. Não ter nada a fazer nos deixa um vazio que nos incomoda profundamente. Por isso, buscamos coisas para preencher esse espaço, para nos tranquilizar e evitar emoções incômodas. No longo prazo, porém, aceitar e encarar de frente esses sentimentos pode ser útil, e a sensação de tédio deveria ser aceita mais prontamente.

Oliver Burkeman, autor do livro "Quatro Mil Semanas", vai além. Diz que precisamos descobrir não apenas no que queremos ter sucesso na vida, mas também no que queremos fracassar. "É inevitável que você acabe tendo desempenho insatisfatório em alguma coisa ... mas o grande benefício do desempenho insatisfatório estratégico ... é que você foca seu tempo e energia mais efetivamente", ele escreve.

Gosto dessa ideia, se bem que, sendo uma pessoa que quer ser ótima em tudo, admito que ainda não a pus em prática. O que já criei, contudo, é uma lista de coisas a não fazer. Mesmo que você não esteja com vontade de fazer a quaresma, talvez queira se juntar a mim neste ponto.

Caso esteja precisando de inspiração, seguem algumas sugestões: procure não procrastinar; não passar tempo demais nas redes sociais; não ir dormir muito tarde; não comprar criptomoedas; não contar mentiras e, de modo geral, não se comportar como idiota. Às vezes a ausência do ruim é mais importante que a presença do bom.

Tradução de Clara Allain

Jemima Kelly é colunista do Financial Times

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.