Descrição de chapéu machismo saúde medicina

A caminho de serem maioria, médicas estão em poucos postos de prestígio

Especialistas debatem caminho para reduzir diferenças entre os gêneros; discussão ainda é incipiente

Gabriel Alves
São Paulo

Universo no qual as referências masculinas aparentam primazia, a medicina está, ano a ano, tornando-se cada vez mais feminina. Na última contagem, do estudo Demografia Médica no Brasil 2018, elas já são 45,6% dos 452.801 médicos do país.

Entre recém-formados, desde 2009, há predominância de mulheres. Nesse ritmo, em alguns anos, elas serão maioria.

Por outro lado, ainda não parece próximo o dia em que elas ocuparão metade das posições de destaque na medicina, seja comandando hospitais, atuando como professoras titulares em renomadas escolas médicas ou liderando associações de classe.

Em uma pesquisa Datafolha baseada na opinião de 822 médicos da cidade de São Paulo (34% deles mulheres) e divulgada no último domingo (22) na revista sãopaulo, da Folha, foram apontados 27 médicos, os melhores em 11 áreas (psiquiatria, pediatria etc), baseado nas opiniões de colegas. Nenhum do sexo feminino.

A cirurgiã plástica Vera Lúcia Cardim, 65, é especialista em cirurgias para corrigir malformações faciais
A cirurgiã plástica Vera Lúcia Cardim, 65, é especialista em cirurgias para corrigir malformações faciais - Danilo Verpa/Folhapress

Se a pesquisa tivesse levado em conta apenas opiniões das médicas, o cenário não mudaria. A maior parte dos nomes se manteria e, em duas especialidades, cardiologia e ortopedia, haveria outros vencedores —também homens.

Há ao menos duas hipóteses para explicar essa espécie de patriarcado médico: 1) como há poucas médicas em faixas etárias avançadas, eles têm certa vantagem probabilística; 2) por fatores que podem ir de um sistema meritocrático deficiente e machista à opção delas por postos mais discretos, mulheres se destacam menos.

Para Mário Scheffer, professor da USP e responsável pela Demografia Médica, há machismo nas relações profissionais entre médicos. Tanto as diferenças de remuneração quanto as de reconhecimento, diz ele, são injustificáveis em uma profissão que está se feminizando. 

Scheffer ressalta que há tempos existem especialidades predominantemente femininas (dermatologia, pediatria e geriatria, por exemplo) e outras mais masculinas (como ortopedia e diversas áreas cirúrgicas). Apesar da tendência de mudança, muitas vezes ela acontece bem devagar. "É uma questão que só começou a ser discutida com profundidade mais recentemente."

Nelci Zanon, que preside um comitê internacional de neurocirurgia pediátrica, está em uma área bem masculina --são quase 11 homens neurocirurgiões para cada mulher. 

Ela diz que o cenário está mudando e que um sintoma é um grupo de WhatsApp que nasceu despretensiosamente e que hoje conta com 250 participantes, entre neurocirurgiãs, residentes e graduandas.

Nelci conta que sofreu com o machismo desde a faculdade. "Diziam que nunca uma mulher iria abrir a cabeça de ninguém, que eu seria instrumentadora de luxo." O remédio para evitar galhofas foi esconder dos colegas que se especializaria em neurocirurgia. 

No primeiro hospital em que tentou a residência, ela conta que perdeu a posição para o filho de alguém importante. Na segunda tentativa, em outro local, teve de ouvir do chefe que, se ele tivesse escolha, não a aceitaria, mas que teria de engoli-la por que se tratava de concurso público.

Curiosamente, seu único colega residente, um homem, acabou desistindo da carreira. "Fiz o trabalho de dois e, portanto, tive reconhecimento também dobrado", conta.

Como sentia que seu crescimento naquele meio não se daria sem desgaste, deixou de lado o sonho de uma carreira na universidade. "Mas isso foi a melhor coisa que me aconteceu. Os 'nãos' que recebi me catapultaram ao estrelato."

De acordo com Nelci, uma maior irmandade feminina poderia reduzir a desigualdade: as médicas deveriam indicar mais colegas mulheres para prêmios, palestras e também para seus pacientes.

Com uma visão de mundo diferente da amiga e colega e também liderança em uma área com mais homens que mulheres, a cirurgiã plástica Vera Lúcia Cardim, 65, é especialista em cirurgias para corrigir malformações faciais (muitas de origem genética). 

Gaúcha de Bagé, ela veio para São Paulo no final da década de 1970 para um estágio na Beneficência Portuguesa e lá permanece desde então.

Uma das médicas mais lembradas na pesquisa Datafolha, na segunda posição entre cirurgiões plásticos, Vera diz não ter tido obstáculos em sua trajetória simplesmente pelo fato de ser mulher. "Se você se dedica e faz seu papel, o reconhecimento vem."

Segundo a médica, que fundou a Sociedade Brasileira de Cirurgia Craniomaxilofacial e foi sua primeira presidente, uma das explicações para as discrepâncias de gênero é que a mulher naturalmente sofre com grande sobreposição de tarefas, algo que se agrava com a maternidade. 

Algumas áreas médicas, como as cirúrgicas, diz, requerem dedicação maior. "Além dos atendimentos de consultório, há visitas no hospital e cirurgias agendadas, fora os chamados a qualquer hora. Juntar isso com uma vida familiar regular é muito difícil."

"Poucas mulheres estão dispostas a sacrificar uma 'vida normal' e ter uma dedicação profissional tão grande ao ponto de se destacarem. São casos de exceção. Já os homens, em média, se desligam muito mais facilmente da vida cotidiana e familiar", diz. 

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