'Autocura' para glaucoma e catarata sem aval médico gera guerra judicial

Conselho de oftalmologia faz alerta contra cursos no YouTube que podem atrasar ou prejudicar problemas de visão

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São Paulo

Um método sem aval científico que promete a cura de doenças oculares como glaucoma e catarata sem cirurgias ou tratamentos tradicionais tem levado pacientes a retardar a busca por terapias mais efetivas, piorando problemas de visão.

O alerta é do CBO (Conselho Brasileiro de Oftalmologia) e de outras associações médicas da área, que ingressaram com ações judiciais e já obtiveram liminares para frear a propaganda e a oferta de cursos pagos sobre a técnica.

Chamado de “Meir-Schneider-Self-Healing”, o método de origem húngara prega a utilização de massagens, movimentação dos olhos, exercício de respiração, visualização e relaxamento como forma de tratamento.

Baseia-se na suposição de que o olho possui mecanismos de “autocura”.

A terapeuta ocupacional Tatiana Gebrael ensina exercícios visuais em aula sem comprovação científica no YouTube
A terapeuta ocupacional Tatiana Gebrael ensina exercícios visuais em aula sem comprovação científica no YouTube - Reprodução

Segundo o oftalmologista Cristiano Caixeta Umbelino, secretário-geral do CBO, o método não é reconhecido no Brasil pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) nem por nenhum outro órgão no âmbito na saúde. “A utilização pode agravar sintomas e até mesmo levar o paciente à perda definitiva da visão.”

Ele diz que ele e outros oftalmologistas têm recebido pacientes com problemas sérios de visão que tentaram antes a cura por meio do método.

“O glaucoma, por exemplo, não causa dor ou desconforto, mas provoca perda da periferia da visão. Quando a pessoa percebe, o comprometimento pode ser grande. Você consegue parar onde está, mas não reverter o que foi perdido.”

A Folha falou com três pacientes que procuraram médicos depois de não obterem resultados com os exercícios visuais para problemas de catarata, glaucoma e miopia.

A secretária Carla, 31, que prefere não revelar o sobrenome, diz que tem oito graus de miopia e queria tentar algo que não fosse a cirurgia. Ela afirma que não deu certo, mas também não a fez mal. 

No Brasil, a terapeuta ocupacional Tatiana Gebrael é a principal propagadora do método de “autocura”. Seus vídeos têm mais de 6 milhões de visualizações; no Facebook, são mais 500 mil seguidores.

Em seu site, ela diz que começou a aplicar o método para tratar dos próprios problemas visuais (estrabismo, astigmatismo e hipermetropia).

Ela alega que os “ótimos resultados” a impediram de guardar a informação só para si. “Trabalhei com milhares de pacientes e alunos que tiveram resultados superiores do que os meus em questões como catarata, glaucoma, miopia, degenerações e descolamentos. Eles me motivam a levar essa alternativa para o maior número de pessoas.”

O curso “Olhos de Águia” ensina exercícios e outras técnicas pregadas pelo método, custa cerca de R$ 2.000 e já foi feito por mais de 12 mil pessoas, segundo seu site. Ela também vende um livro e oferece aulas com acesso gratuito.

Na página de Gebrael e em vídeos no YouTube há dezenas de depoimentos de pacientes relatando melhora de problemas de visão com a prática dos exercícios. Outros, porém, relatam desconfortos como dor de cabeça e torcicolos.

Uma mensagem no site diz que o método não substitui o tratamento médico oftalmológico convencional.

Segundo Rubens Belfort Neto, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), não há evidência científica de que os exercícios propostos por Gebrael funcionem nem de que eles façam mal aos olhos.

“O grande perigo é a pessoa com um problema sério de visão ficar tentando algo inócuo e atrasar o início de um tratamento que funciona, que é bem estabelecido. Um descolamento de retina, uma retinopatia diabética, por exemplo, têm potencial de cegar se não forem tratadas rapidamente.”

Em 2016, uma decisão judicial do Tribunal de Justiça do Pará determinou que Tatiana retirasse da sua página na internet e de outros meios de divulgação qualquer sugestão de cura ou tratamento de doenças oculares que não tenha evidência científica.

A ação foi movida por entidades paraenses de oftalmologia. Segundo elas, o método propagado é arcaico (remonta a 1912) e nunca teve fundamentação científica.

As entidades acusam Tatiana Gebrael de exercício ilegal da medicina (por substituir o tratamento dos pacientes com doenças oculares), propaganda enganosa e falsidade ideológica (por vender algo que não consegue entregar aos seus clientes, a autocura), charlatanismo e estelionato.

Por não ter cumprido a decisão judicial, o TJ do Pará determinou em agosto passado que ela pague multa de R$ 50 mil. A decisão cabe recurso.

Em dezembro, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou, por meio de liminar, o impedimento dos cursos. A alegação é que eles são da área médica e Gebrael não tem qualificação para tanto.

A decisão também cita o fato de a empresa não ter registro no MEC para oferta desses cursos. Em seu site, ela tem dito aos seguidores que as inscrições estão fechadas.

“As decisões judiciais não têm sido cumpridas. Talvez porque as multas aplicadas pela Justiça são muito inferiores ao que ela diz que ganha [na internet, há vídeos em que Gebrael diz que faturou R$ 330 mil com o relançamento do livro sobre o método e R$ 75 mil com outros produtos, como os cursos]”, diz Umbelino.

Desde segunda (25), a Folha tenta contatar Gebrael por meio do email e do número de celular que constam no site, mas não teve retorno até o fechamento desta edição.

Por email, foram recebidas duas respostas automáticas em nome de Tatiana Gebrael. Uma fala da promoção do seu livro e outra diz que a mensagem havia sido recebida e um protocolo, gerado. 

No texto, também há ofertas de um autoatendimento e do acesso gratuito para um vídeo. “Se eu fosse precificar essa aula, não sairia por menos de R$ 450”, diz.

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