Descrição de chapéu The New York Times

Ele era o rosto de um evento ciclístico de combate ao câncer. E era também uma fraude

John Looker dizia ser portador de câncer no cérebro

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Abby Ellin
Nova York | The New York Times

​​Erica Decker sabia três coisas sobre John Looker quando ele a contatou via Facebook em 2014: Looker era uma figura cultuada em Columbus, Ohio, a cidade em que ambos viviam. Havia se tornado a face do evento ciclístico de caridade Pelotonia, que já havia arrecadado milhões de dólares em verbas para a luta contra o câncer. E sofria do mesmo tipo de câncer de cérebro que Lily, a filha pequena de Decker.

Looker tinha lido sobre Lily no jornal The Columbus Dispatch, e queria demonstrar apoio. “Sei que você e sua família não me conhecem, mas por favor sinta que estou com vocês em espírito hoje”, ele escreveu. 

Poucos dias depois, escreveu um novo bilhete: “Eu adoraria visitar você e sua família”.

Decker, 46, ficou curiosa. Por isso, naquela noite ela visitou a página de Facebook de Looker, que trazia diversas atualizações de saúde, citações inspiradoras e expressões de adoração da parte da comunidade. Mas algo lhe pareceu errado.

Ela respondeu perguntando o nome do oncologista de Looker.

“Normalmente não compartilho essa informação porque, anos atrás, quando o fiz, ela recebeu um monte de telefonemas da comunidade do Pelotonia pedindo que fizesse mais por mim”, ele escreveu em retorno. Mas Decker repetiu a pergunta. Looker a desregistrou como amiga no Facebook.

John Looker foi um grande arrecadador de fundos para o Pelotonia, até que as pessoas começaram a fazer perguntas
John Looker foi um grande arrecadador de fundos para o Pelotonia, até que as pessoas começaram a fazer perguntas - Maddie McGarvey - The New York Times

A ascensão de John Looker como celebridade entre os pacientes de câncer começou em 2011, no campo, perto de Columbus, na cerimônia de abertura do Pelotonia, um evento criado em 2008. Os patrocinadores incluíam a NetJets, o banco Huntington e a L. Brands Foundation. Os participantes pedalavam por até 290 quilômetros, e se comprometiam a arrecadar pelo menos US$ 1,2 mil (R$ 4730). As doações seriam usadas integralmente para bancar pesquisas sobre o câncer, no James Cancer Hospital e no Instituto de Pesquisa Solove.

O Pelotonia é um entre centenas de eventos longos que arrecadam dinheiro para organizações de caridade, e busca uma fonte de doações – amigos, parentes e colegas dos participantes – que se tornou lucrativa.

“O Pelotonia é quase uma religião”, escreveu Ben Addison, 54, antigo parceiro afetivo de Looker. “As pessoas o levam muito a sério”.

Lance Armstrong capitaneou o primeiro Pelotonia em 2009. Chris Spielman, um jogador aposentado de futebol americano cuja mulher, Stefanie, morreu de câncer de mama, foi o porta-voz do evento no ano seguinte. Quando Looker começou a participar, em 2011, o Pelotonia já envolvia cinco mil participantes e havia arrecadado US$ 25 milhões (R$ 98 milhões). O total arrecadado, antes do início do evento deste ano, que começa na sexta-feira, supera os US$ 194 milhões (R$ 764 milhões).

Looker falou à multidão, em um telão de vídeo em 2011. “Vou ser curto e direto”, ele disse. “Tenho câncer de cérebro terminal em estágio quatro. Amanhã vou pedalar. E não vou procurar desculpas”.

Ele subiu ao palanque usando calções bege e uma camiseta azul com o lema do Pelotonia, “One Goal”. Um rugido de aplauso surgiu.

“Fiquei arrepiada”, disse a pediatra Diane LeMay, 54, que estava participando de seu primeiro Pelotonia.

No ano seguinte, Looker, que cresceu em Newark, Ohio, cantou o hino nacional na abertura do evento. Havia se tornado um astro local. Em qualquer lugar que fosse, era parado por pessoas que pediam para tirar fotos com ele, ou se ofereciam para lhe pagar jantares.

“Eu era o príncipe Philip e ele era a rainha”, disse Addison.

Os dedicados seguidores de Looker se descreviam como “Looker’s Hookers”. Eles pedalavam por centenas de quilômetros, arrecadando dinheiro para o Pelotonia em honra dele. Postavam imagens na mídia social com o hashtag #loveforlooker. Compravam “cookies" – Lookies – que Looker preparavam, e trabalhavam no bazar que ele promovia em sua casa a cada segundo trimestre. As doações eram em dinheiro ou em cheques nominais a Looker.

“Ele foi sempre muito doce e charmoso”, disse Joshua Pitt, 45, executivo de marketing e membro da brigada de Looker. A irmã de Platt estava lutando contra um câncer de mama e sua sogra morreu de um tumor glioblastoma, o tipo de tumor que Looker dizia ter.

Looker parecia estar derrotando as probabilidades adversas. “Isso despertava muita esperança”, disse Pitt.

John Looker, de vermelho no centro da foto, depois de pedalar 180 milhas na Pelotonia de 2013
John Looker, de vermelho no centro da foto, depois de pedalar 180 milhas na Pelotonia de 2013 - Alex Holt - The Columbus Dispatch

A despeito de sua doença, ele era generoso com seu tempo. Contatava pacientes de câncer e suas famílias. Foi assim que conheceu Decker, e foi assim que as coisas começaram a se deteriorar.

Depois de estudar a página de Looker no Facebook, o detector de fraudes de Drecker disparou. Os tumores não faziam sentido para ela; não entravam em metástase, só mudavam de lugar,

“Ele estava bem e aí encontravam um tumor no seu peito ou cabeça”, disse Decker, que hoje vive em Cody, Wyoming. “A cada segundo trimestre, antes do registro do Pelotonia, o câncer dele voltava. E ele sempre teve excesso de peso”.

No começo de 2015, Decker conversou com Michelle Merlino, que tinha trabalhado com Looker na Continental Office, uma empresa de mobiliário para escritórios. Looker era capitão da equipe de ciclismo da Continental, que arrecadava dinheiro para o Pelotonia. Entre 2011 e 2013, Merlino, 48, foi discípula de Looker, participando de saídas em bicicleta com ele nos finais de semana e doando dinheiro para seu fundo. Mais tarde ela começou a ter dúvidas. Looker parecia nunca ir ao hospital; tinha um emprego de período integral, pedalava e fazia “cookies” todos os dias.

Merlino e Decker levaram suas preocupações a Kelley Griesmer, vice-presidente de operações do Pelotonia. Para surpresa delas, a organização tinha dúvidas parecidas. Mas os regulamentos sobre privacidade de pacientes impediam os organizadores de questionar o médico de Looker, e não havia indícios de que ele tivesse desviado fundos.

Griesmer, que foi advogada especializada em falências, agora dirige o Women’s Fund of Central Ohio, uma organização sem fins lucrativos, e percebeu que Looker curtia a atenção que recebia por sua associação ao evento ciclístico, e que as informações médicas que compartilhava pareciam extraordinárias.

“Ele estava tentando se aproximar dos participantes sem que pedíssemos, e isso me preocupava”, ela disse. “Ao mesmo tempo, eu não estava em situação de dizer que ele estava mentindo”.

Mas o Pelotonia mesmo assim removeu um vídeo promocional de Looker de seu site, o retirou de seus materiais publicitários e eliminou menções a ele em seus relatórios. Mas tendo apenas rumores como base, não o proibiu de participar do evento ou de solicitar dinheiro a doadores, e nada revelou sobre a situação publicamente.

Merlino e Decker não estavam contentes. A comunidade não deveria ser informada de que uma das lendas do Pelotonia talvez fosse um farsante?

Alguns dos amigos mais próximos de Looker também estavam começando a se preocupar. 

Em maio de 2016, LeMay foi uma das quatro pessoas que ajudou Looker em seu bazar. Qualquer coisa que ela vendesse deveria ter os proventos depositados em sua conta de arrecadação de fundos para o Pelotonia. Em outubro, o dinheiro ainda não tinha entrado, ela disse.

Então, em agosto de 2018, pelo menos sete anos depois do suposto diagnóstico da doença de Looker, dois outros dos Looker’s Hookers, Paul Harrison e Dave MacPhail, começaram a sentir dúvidas. MacPhail, 57, conhecia Looker desde a metade da década de 1990. Naquela altura, ele recordou, Looker dizia ter câncer de cólon.

Os três decidiram confrontar Looker. Mas primeiro procuraram Addison para uma conversa.

Addison não acreditou neles. Ele e Looker estavam juntos há 17 anos; como seu parceiro poderia ter fingido uma doença? “Ninguém pensaria que uma pessoa poderia mentir sobre ter câncer”, disse Addison.

Cerca de uma semana depois, LeMay e MacPhail se reuniram com Doug Ulman, presidente-executivo do Pelotonia, e no passado presidente da Fundação Livestrong, de Lance Armstrong, e com dois outros representantes da organização.

“Ele disse que não estava preocupado com dinheiro que pudessem ter perdido com John, mas que a maneira pela qual a situação dele poderia nos afetar era uma preocupação”, disse LeMay.

Uma porta-voz do Pelotonia disse que Ulman estava simplesmente reassegurando LeMay e MacPhail de que eles não deveriam se criticar por conta do suposto prejuízo, calculado em menos de US$ 1,5 mil (R$ 5,9 mil).

Em 25 de agosto, LeMay, MacPhail e Harrison foram à casa em estilo colonial de Addison onde Looker vivia há quase duas décadas.

“Sei que você não tem câncer”, disse MacPhail.

Looker insistiu em que tinha a doença. 

MacPhail pediu o nome de seu médico, “Jane Libbey”, ele respondeu.

Eles procuraram o nome no Google. Nada.

LeMay pediu para ver registros médicos, um vidro de remédios, uma explicação de benefícios. Looker, que mantinha a cabeça raspada como um paciente de câncer, não tinha qualquer dessas coisas a oferecer. Em uma hora, dizem os três, ele havia admitido que tinha inventado a coisa toda e que havia usado parte do dinheiro que recolheu durante aqueles anos todos para “cobrir despesas pessoais”.

Looker passou as mãos por sobre a cabeça, voltou os olhos para o chão e começou a chorar.

“Preciso de ajuda”, ele disse.

LeMay e MacPhail o levaram a um pronto socorro. Depois ligaram para sua mãe.

Looker e seus pais recusaram diversos pedidos de entrevista.

Os três denunciantes em seguida procuraram o Pelotonia. Quatro dias mais tarde, Ulman divulgou um comunicado. Sobrevivente a três embates com o câncer, ele admitiu que o Pelotonia tinha ouvido rumores sobre a trapaça de Looker três anos antes, havia retirado publicidade associada a ele e que agora havia apresentado uma queixa ao secretário da Justiça estadual do Ohio, nos termos da lei de caridade do estado, sobre a possível retenção indevida de doações em dinheiro por ele.

LeMay e MacPhail apresentaram uma queixa à polícia de Columbus, afirmando que Looker reteve pelo menos US$ 1,3 mil (R$ 5,1 mil) em doações ao bazar que realizou em maio de 2016. Houve outras queixas de moradores locais que acusaram Looker de não entregar à organização dinheiro supostamente arrecadado em nome deles.

Em depoimento à polícia, Looker admitiu ter mantido entre US$ 800 e US$ 900 (cerca de R$ 3,5 mil) porque estava “curto de dinheiro”. Ele disse que recebeu um diagnóstico como “maníaco depressivo e bipolar”, e que isso o fez mentir sobre o câncer de cérebro.

A polícia não levou adiante as acusações; de acordo com uma porta-voz, as provas eram insuficientes.

Em abril, LeMay apresentou queixa ao secretário da Justiça do Ohio contra o Pelotonia. ‘Eles permitiram que alguém perpetuasse um mito e uma fraude para arrecadar dinheiro”, ela disse.

Platt disse acreditar que o Pelotonia tem “uma obrigação moral” de fazer mais para proteger a comunidade.

Um representante de imprensa do Pelotonia disse que “as pessoas estão confundindo as circunstâncias de 2015 com as de 2018, e elas são imensamente diferentes. A organização obteve fatos adicionais sobre Looker em 2018, e agiu imediatamente quanto a eles”.

Esta semana, o departamento estadual de Justiça anunciou um acordo com Looker, 50. Ele concordou em restituir US$ 1,8 mil (R$ 7 mil), pagar uma multa civil de US$ 2 mil (R$ 8 mil), e estará proibido de arrecadar dinheiro ou manter postos em qualquer organização de caridade em Ohio, exceto como involuntário sem contato com o dinheiro da organização.

Daniel Rosenthal, presidente do conselho do Pelotonia, afirmou em email que “o Pelotonia simplesmente não tem condições de verificar independentemente o que cada participante individual diz sobre si mesmo”.

Em comunicado à comunidade do Pelotonia, Ulman afirmou que antes de a organização usar sobreviventes como porta-vozes, de qualquer maneira, eles assinam um termo de responsabilidade sobre a veracidade do que dizem.

Ninguém teve contato com Looker depois de sua confissão. Seu ex, Addison, insistiu em que nunca soube da trapaça, porque costuma viajar a trabalho e não acompanhava Looker às suas consultas.

LeMay está tentando compreender a traição. Como é que ela - médica - caiu na trapaça?

Seu único consolo é acreditar que Looker a tenha tomado por alvo porque a profissão dela o ajudava a enganar terceiros,

“Ele era bom em seu crime”, disse LeMay.

Abby Ellin é autora de “Duped: Double Lives, False Identities and the Con Man I Almost Married” [trapaceada: vidas duplas, falsas identidades e o trapaceiro com quem quase me casei].

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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