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Alunos de ioga confrontam instrutores sobre toques inapropriados

Ioga começa a debater a questão do consentimento; alguns estúdios nos EUA dão cartões que indicam se o aluno quer ou não ser tocado

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Katherine Rosman
Nova York | The New York Times

O movimento #MeToo pode ter ajudado a lançar luz sobre certas interações entre chefes e funcionárias, clérigos e crentes, médicos e pacientes.

Agora os casos de professores de ioga que se deitam sobre estudantes com seus genitais encostados nas delas podem se somar a essa lista.

A americana Rachel Brathen não fazia ideia do dilúvio que viria em sua direção quando perguntou a seus seguidores no Instagram se eles já haviam sido tocados de uma maneira que lhes pareceu inapropriada na ioga.

Isso foi quase dois anos atrás. Brathen, que tem 31 anos e é dona de um estúdio de ioga em Aruba, recebeu centenas de respostas.

Os relatos descreviam casos de abusos de poder e influência. Estudantes de ioga descreveram que foram assediadas após as aulas e durante retiros de ioga, foram beijadas à força em sessões de meditação particulares e agredidas em mesas de massagem, após sessões de ioga.

As queixas também incluíram casos de pessoas que disseram ter sido tocadas de maneiras que lhes pareceram impróprias durante aulas de ioga —em público, basicamente.

Mais de 130 pessoas que responderam autorizaram Rachel a encaminhar seus relatos a alguém que pudesse ajudar a cobrar os responsáveis.

No caso de outros profissionais cujo trabalho pode envolver tocar pessoas –como massoterapeutas, por exemplo—, seu trabalho geralmente é regulamentado pelo governo nos EUA. Isso não ocorre com professores de ioga, e não há organizações profissionais do setor que policiem essas questões.

Autora do livro “Yoga Girl”, Rachel Brathen escreveu alguns posts com trechos editados das cartas. Foi a única consequência dos relatos recebidos.

Cinco meses mais tarde, em abril de 2018, nove mulheres foram a público em um artigo de revista para falar sobre como foram tratadas por um dos mais importantes, mais influentes e respeitados gurus da ioga. Novamente, muito pouco aconteceu depois.

Ignorar queixas sobre toques indesejados ou coisas piores tem sido a regra na ioga há décadas. Boa parte da comunidade da ioga tem demorado ou não se disposto a reagir, talvez porque os professores relutem em desacreditar figuras que veem como gurus. Além disso, muitos professores de ioga construíram seus empreendimentos e suas marcas pessoais em parte em cima de sua conexão com essas figuras.

Sujeito a uma enxurrada de denúncias sobre abuso e assédio no mundo da ginástica olímpica, em Hollywood e em outros setores, o público talvez ache mais fácil minimizar iogues como nada mais que hippies esdrúxulos ou pessoas interessadas em promover seu nome no Instagram.

Na realidade, a ioga é uma das formas de exercício físico mais acessíveis e populares praticada em todo o mundo e movimenta bilhões de dólares em roupas, equipamentos e imóveis.

E, enquanto a discussão sobre toque e consentimento vem ocorrendo há algum tempo em escolas, igrejas, no mundo esportivo e no campo da medicina, o estúdio de ioga ainda é um lugar onde o simples ato de uma pessoa desenrolar sua esteira assinala a muitos professores — bem intencionados ou não—que eles podem tocá-la da maneira que quiserem.

“Muitos dos relatos que recebemos diziam respeito ao chacra do coração e o centro cardíaco, que é também a parte do corpo onde ficam os seios”, disse Rachel Brathen, sobre os relatos que recebeu. “Será que é tudo bem alguém tocar meus seios porque ficam perto do meu coração?”

Rachel Brathen disse que enxergou um tema recorrente. Ensina-se aos estudantes que a ioga é uma prática espiritual, “uma coisa importante e misteriosa”. “Então se houver algo que não entendemos, vamos confiar no que nos diz o professor."

Se você já fez aulas de vinyasa, power ioga ou flow ioga, você já praticou uma versão da ioga ashtanga. Esta foi popularizada e batizada por um homem chamado Krishna Pattabhi Jois (o sobrenome se pronuncia como Joyce) que morreu em 2009, aos 93 anos de idade.

Jois também ajudou a popularizar os chamados ajustes, usados por professores de ioga para manipular fisicamente o corpo de um estudante. Na maioria dos estúdios hoje os ajustes podem variar desde manobras realizadas com força para ajudar o praticante a atingir determinada postura até alinhamentos suaves para evitar lesões ou demonstrar apoio ao praticante que está fazendo uma postura difícil. Alguns professores trabalham quase apenas com orientações verbais.

Mas algumas antigas alunas de Jois dizem que em muitos casos os ajustes que ele fazia não eram realmente uma questão de ioga. Karen Rain, hoje com 53 anos, contou: “Ele montava em cima de mim, fazendo questão de posicionar sua genitália diretamente em cima da minha, empurrava minha perna para baixo contra o chão e se esfregava em mim. Esfregava seus genitais contra os meus.”

Devido ao poder de Jois, à devoção que ele recebia dos alunos e ao fato de esses ajustes serem feitos em público, as mulheres levaram anos, em alguns casos, para entender o que significaram realmente essas experiências.

Rain explicou: “Tentei justificar aquilo para mim mesma, me dizendo que ele estava me ajustando e que eu tinha que me render ao ássana” –o termo é derivado do sânscrito e significa as posturas e os movimentos da ioga—“e que havia alguma razão pela qual ele estava fazendo aquilo, uma razão que eu ainda não entendia, e que se eu continuasse a praticar, algum dia talvez fizesse sentido para mim”.

Rain conheceu Jois em 1993 e virou sua discípula extasiada. 

Jubilee Cooke, hoje com 54 anos, estudou com Jois em 1997. Disse que o mestre a apalpava de modo sexual diariamente.

“Pattabhi Jois se aproximava por trás quando eu estava na posição de lótus plena e agarrava minha virilha. Ele me agarrava pelos genitais e me puxava para trás, me erguia para trás para que eu terminasse numa flexão de ioga”, disse Cooke.

Ele se deitava em cima dela e se esfregava contra ela, como fazia com Karen Rain. Às vezes Jois se posicionava atrás dela quando ela estava na postura de alongamento intenso, com a cabeça e o tronco abaixados para a frente e as mãos no chão. Ela podia vê-lo simulando movimentos sexuais no ar, empurrando sua pelve na direção dela.

Rain e oito outras mulheres vieram a público em 2018 em um artigo do professor de ioga Matthew Remski publicado pela revista canadense “The Walrus”. Elas descreveram suas experiências de ser apalpadas, beijadas e até de um professor inserir os dedos em sua vagina através das leggings.

Algumas pessoas tentaram intervir enquanto Jois ainda era vivo. Farley Harding, hoje com 58 anos, esteve na Índia em 1995 e estudou com Jois. Depois de ficar enojado com o que viu Jois fazer com alunas, “agarrando-as pelas nádegas e beijando-as”, ele confrontou o guru a sós. “Falei a ele: ‘Você é um professor e nós somos estudantes. O que você está fazendo com as estudantes está errado.’”

Harding disse que Jois se fez de desentendido e parou de estudar com ele.

Era fácil idolatrar uma figura como Pattabhi Jois. No mundo da ashtanga ioga, quem tivesse estudado com ele intensivamente uma vez ou ao longo de anos era comparável a um padre católico ensinado pelo papa.

A foto de Jois ainda é encontrada nos altares de alguns estúdios de ioga, e seu nome ainda enfeita alguns sites de ioga, como símbolo de status profissional. Nas redes sociais, alguns iogues contestam o mérito das declarações dadas pelas mulheres. As fotos que mostram Jois com as mãos sobre a vulva de estudantes de ioga são explicadas como não sendo o que parecem.

Histórias dolorosas sobre assédio e abusos também revelaram como pode ser complicado entender e agir em certas situações mais ambíguas. Entrevistei mais de 50 praticantes de ioga, professores e donos de estúdios de ioga para falar da questão do toque. O que percebi é que talvez não exista uma zona mais cinzenta do que o estúdio de ioga, onde intimidade física, espiritualidade e uma dinâmica de poder se juntam em um espaço pequeno.

Para mergulhar fundo na ioga enquanto eu fazia as pesquisas para esta reportagem, em julho participei do Asheville Yoga Festival, na Carolina do Norte. O que descobri ali é que a discussão pública sobre toque e consentimento que por tanto tempo passou ao largo da ioga está finalmente começando.

A primeira aula que fiz no festival foi um workshop intitulado “Inversões e ajustes”, comandado por Jonny Kest, 52 anos, um astro no mundo da ioga.

Kest exerce influência sobre todas as maneiras em que a indústria do fitness hoje investe, como marcas de roupa, programas de treinamento de professores e a criação de experiências que atraiam as pessoas a sair de casa.

Nessa aula, que durou quatro horas, Kest explicou os diferentes tipos de ajustes a 30 instrutores e entusiastas de ioga, em sua maioria mulheres.

Há os ajustes verbais, em que um professor orienta o ou a estudante a mover um braço ou ombro. Há os chamados “pontos de pressão”, em que um toque muito leve é utilizado como sugestão. E há os ajustes mais diretos e físicos.

Posicionado atrás de uma estudante, com uma de suas pernas em volta de uma das pernas da estudante, Kest passou um braço em volta do torso da estudante e posicionou uma mão entre o seio e a clavícula dela. A aluna estava na postura conhecida comumente como triângulo. 

Mais tarde, ele demonstrou um ajuste incomum a uma estudante que estava na postura final de descanso. Alguns iogues disseram que esse ajuste é descrito comumente como “a troca de fraldas”.

“Envolve alguma intimidade”, disse Kest, depois de haver selecionado uma voluntária que disse sentir desconforto na região lombar quando se deitava no chão. Kest disse que o ajuste em questão tinha o objetivo de aliviar esse desconforto. Com a estudante no chão, ele posicionou seus joelhos debaixo da lombar dela. As nádegas dela ficaram sobre o colo de Kest.

“Agora você pega os pés dela, abre as pernas dela e as coloca em volta de você”, ele explicou, fazendo isso com as pernas da aluna. Ele recomendou então que se esfregassem os antebraços da estudante, inclinando-se para frente e pressionando sobre os ombros dela, posicionando suas mãos sobre o abdome ou pelve da estudante. “Muitas vezes eu balanço um pouco, para relaxar.”

Depois de Kest ter demonstrado esse ajuste, Catherine Derrow, professora de ioga e personal trainer de Columbus, no Ohio, perguntou se ele alguma vez pedia permissão antes de realizar esse ajuste. Kest a encorajou a colocar a pergunta para o grupo.

“Eu ficaria muito espantada se alguém fizesse isso comigo numa aula”, disse Derrow diante de todos. “Eu não gostaria.”

Kest respondeu: “Essa é uma discussão muito boa, muito importante. Como você faria para que não fosse ofensivo? Perguntaria ‘posso tocar você?’. Isso não funciona.”

“Acho que o que você fez é diferente de simplesmente tocar”, respondeu Derrow. Ela propôs que se reformulasse a pergunta: “Posso me sentar no meio de suas pernas, abrir suas pernas e me sentar?”

Derrow disse que no estúdio onde ela dá aula, há “cartões de consentimento” estampadas com X ou O, com os quais os estudantes podem indicar, sem precisar verbalizá-los, se concordam ou não em ser tocados.

“Ao longo dos anos eu constatei que essa história de X ou O não funciona”, disse Kest.

Outra estudante sugeriu que ele convidasse as pessoas no início da aula a colocar a mão sobre o coração ou sobre o ventre se quisessem receber um ajuste. Alguém sugeriu que ele poderia simplesmente pedir licença.

“Não faço nada disso”, disse Kest.

Mais tarde Catherine Derrow pediu a Kest para posar com ela para uma foto, que ela compartilhou no Instagram. Ela disse que fez isso porque queria encontrar uma maneira de concluir sua interação com ele em tom positivo.

“Não acho que Jonny Kest seja uma pessoa terrível”, ela disse naquela noite. “Achei que foi um lapso de julgamento da parte dele.”

Ela comentou também que se sentiu muito só quando o confrontou sobre suas técnicas. “Ninguém mais tomou a iniciativa para dizer ‘também acho que esse foi um ajuste muito estranho’. Mas depois da aula umas seis ou sete pessoas me disseram ‘meu Deus, fiquei tão contente que você disse alguma coisa. Foi tão, tão estranho. Eu jamais faria alguma coisa assim numa aula.’ Isso explica por que ele fala: ‘Ninguém está reclamando, ninguém está fazendo objeção alguma’. Não é que as pessoas estejam gostando. É que elas sentem que não têm como erguer a voz naquele ambiente.”

Através de um representante de seu estúdio Center for Yoga, Jonny Kest recusou vários pedidos de entrevista.

Em email enviado nesta semana a editores do “New York Times”, Kest disse que o escrutínio ao qual está sendo submetido é injusto e manifestou o receio de que este artigo fosse uma tática cujo objetivo seria prejudicar seu negócio. “Isso apesar do fato de que nossa abordagem se alinha com a de inúmeros outros estúdios de ioga neste país e no exterior”, ele escreveu.

No workshop em Asheville, Kest explicou que criar uma expectativa de ensino direto, envolvendo o toque, é importante se esse é o tipo de aula que você pretende dar. Falando da “troca de fralda”, ele comentou: “A possibilidade de fazer esse tipo de ajuste depende realmente do tipo de cultura que você cria em suas aulas.”

Kest é conhecido entre os praticantes de ioga dos subúrbios de Detroit pelo uso abundante de toques e ajustes íntimos, coisas que são promovidas em fotos e um vídeo no site do estúdio. E suas aulas são muito procuradas.

Mas quando ele leva sua abordagem a outras comunidades, ela às vezes causa ofensa a estudantes para as quais é inesperada. Jenni Donnell, 43 anos, fez uma aula com Kest em 2014 em um estúdio da Life Time em Orange County, Califórnia.

Ela disse que durante a aula Kest falou em intimidade e paixão. Quando Donnell estava fazendo uma postura, deitada de costas com o tornozelo sobre o joelho da perna oposta, numa figura de 4, Kest se aproximou e pegou o pé dela que estava estendido.

De frente para ela, ele colocou o pé dela apertado contra a virilha dele. Então se inclinou em direção a ela e pôs suas palmas abertas sobre o peito dela, tocando seus seios parcialmente.

Quando ela estava na pose final de relaxamento, Kest voltou para perto dela. “Ele posicionou sua mão sobre meu seio outra vez e então a colocou sobre minha pelve”, disse Donnell.

Ela não soube como interpretar o que acontecera e se questionou sobre se era muito reprimida. Dias depois, ela continuava confusa e aflita. Ela escreveu sobre o que acontecera, sem identificar Jonny Kest por seu nome.

Hoje, cinco anos mais tarde, Donnell enxerga o que ocorreu com mais clareza: “Se ele tivesse chegado perto e perguntado: ‘Tudo bem se eu apertar seu pé contra minha pelve, perto de minha virilha, das minhas partes íntimas?’, eu teria dito ‘não’.”

Pattabhi Jois morreu dez anos atrás, mas líderes da ioga ashtanga ainda relutam em ter um diálogo aberto sobre seu legado.

Sharath Jois é neto de Pattabhi. Recentemente descreveu-se no Instagram como o “Guru da Ioga Ashtanga” e também acrescentou à sua biografia o título de “Paramaguru”, ou “aquele que conserva a linhagem”. Ele dá aulas de ioga na Índia e percorre o mundo comandando workshops. No verão deste ano, mudou o nome da organização criada por seu avô, que agora é chamada Sharath Yoga Center.

Em julho deste ano Sharath rompeu um silêncio público, publicando um post no Instagram em que manifestou sua tristeza pela dor causada pelos “ajustes impróprios” de seu avô e perdiu perdão por isso. O post concluiu com emojis de mãos em posição de oração.

Mas Sharath recusou vários pedidos para ser entrevistado para esta reportagem. “Estou extremamente ocupado com meus ensinamentos”, disse em mensagem de WhatsApp.

Em seu post no Instagram, ele questionou por que estudantes mais adiantados não interpelaram seu avô.

Ainda é possível que as coisas mudem. Executivos do estúdio Life Time disseram que estão reavaliando os métodos de Jonny Kest e decidiram exigir que todos os professores dos quase 150 estúdios da Life Time entreguem cartões aos estudantes de ioga que poderão colocar sobre suas esteiras para assinalar se concordam ou não em ser tocados.

“Na conversa que tive com Jonny Kest, ele indicou que concorda em efetuar mudanças imediatas”, disse Jeff Zwiefel, executivo operacional chefe da Life Time. “Ele está adotando isso em suas aulas pessoais.”

É apenas um ponto de partida, mas é o tipo de coisa que Rachel Brathen esperava que resultasse de seu post no Instagram, dois anos atrás.

“O toque físico pode ser incrivelmente surpreendente e maravilhoso”, ela disse. "Mas por que não simplesmente perguntar ao estudante se ele ou ela sente a mesma coisa? Leva um segundo e a resposta é ‘sim’ ou ‘não. Não é tão difícil assim.”

Katherine Rosman pratica ioga há anos. Com reportagem de Jamila Wignot.

Tradução de Clara Allain

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