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Agentes de saúde usam até megafone contra a Covid-19

Cruciais, profissionais foram subaproveitados até aqui, dizem pesquisadores

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Rio de Janeiro

Em 30 de março, uma semana após o início da quarentena no Rio, o agente comunitário de saúde Alexandre Mendes Barbosa, 44, começou a ter febre, calafrios e dor de cabeça. Foram os primeiros sintomas da Covid-19, doença que o acometeu de forma moderada, mas o afastou do trabalho por 21 dias.

Responsável pelo treinamento de outros agentes no combate à pandemia, Barbosa viveu a ironia de ser o primeiro caso da Centro Municipal de Saúde Dr. Albert Sabin, unidade em que atua, na Rocinha (zona sul da cidade).

Ele, que está terminando a faculdade de enfermagem, tinha receio de seguir trabalhando na comunidade.

"Era uma doença nova, muito recente, não sabia o que fazer com relação às visitas. Em abril, maio, não ia para a rua, mas não deixava meus pacientes desamparados." O atendimento das 980 pessoas de sua microárea seguia virtualmente. "Aí eu comecei a sair usando os EPIs (equipamentos de proteção individual)."

As visitas voltaram, mas ainda se restringem a conversas por portões e janelas. "A gente precisava manter os grupos [de atendimento]. De repente pode ficar tudo descompensado. É um desafio novo."
Barbosa conta que o receio inicial das comunidades em receber os agentes arrefeceu. "Agora estou vendo uma procura maior [pelo serviço]."

O drama vivido pelos agentes comunitários de saúde durante a pandemia foi avaliado pelo estudo "A pandemia de Covid-19 e os profissionais de saúde pública no Brasil", coordenado pela professora Gabriela Lotta, da Fundação Getulio Vargas (FGV).

Agentes comunitários de saúde em atendimento - Nelson Gandra

O estudo, publicado em julho, analisou as condições de trabalho e a percepção desses profissionais em relação à pandemia. Segundo a pesquisa, 87% dos agentes de saúde observaram impactos em sua saúde mental —para médicos e profissionais de enfermagem, os índices foram, respectivamente, de 59% e 51%.

"Mesmo que eles estejam afastados, as pessoas os param na rua e pedem ajuda. Eles estão muito mais expostos que o médico e a enfermeira da unidade básica, desenvolvem vínculos muito próximos a essas pessoas. Atendem a família deles, amigos, pessoas da igreja", diz Lotta.

De acordo com o levantamento, 80,1% dos agentes comunitários não se sentem preparados para lidar com a crise —é o número mais alto entre os profissionais listados.

Do total de entrevistados, 69,7% relataram não terem recebido EPIs, e 87,1% afirmaram não terem recebido treinamento para a pandemia.

"O governo federal fez uma série de erros e omissões que deixou esses agentes comunitários numa situação muito crítica. Eles precisavam tanto de orientação sobre como readequar o trabalho quanto de recursos", afirma Lotta.

Segundo a pesquisadora, o fato de que a gestão ficou a cargo dos municípios deixou os profissionais em situação vulnerável, à mercê das condições financeiras e decisões de cada prefeitura. "O governo federal não assumiu seu papel de regulador do sistema."

Atuando na atenção primária aos cidadãos, os agentes comunitários de saúde têm, ainda, papel fundamental nas campanhas e ações de vacinação, assunto para o qual ainda não foram mobilizados. Mas a vacina contra a Covid-19, diz Lotta, "é uma não questão nesse momento".

Como Alexandre Barbosa, a agente Terezinha Gomes de Almeida, 49, trabalhou com muito medo durante o auge da pandemia da Covid-19 em Manaus (AM), em abril.

"Saía de casa apavorada. Minha mãe, que mora no interior [do Amazonas], é diabética e hipertensa, me ligava e pedia para eu voltar para casa. Ela assistia as notícias pela TV e ficava assustada. Foi muito complicado."

Ela atende 170 famílias do bairro Alvorada 1, bairro da capital amazonense, presencialmente ou por WhatsApp. Seis das 590 pessoas que então acompanhava morreram.

"Fiquei arrasada. Tinha uma senhora [morta em abril] que toda vez que eu ia visitar oferecia um almoço. Tinha aquele elo, aquela amizade."

Depois de um período de queda nos casos, que permitiu aos profissionais "respirar um pouquinho", a situação em Manaus voltou a se agravar.

Em 23 de outubro, a cidade registrou 638 novos casos, a terceira maior média móvel desde o início da pandemia.

"Voltou de novo", conta a agente, que tem feito visitas domiciliares pela manhã e trabalhos internos à tarde. Um de seus desafios diários é acompanhar ex-pacientes de Covid-19 com sequelas.

Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil dispõe de 262.371 agentes comunitários de saúde. Além de atuarem na ponta, são os que têm mais capilaridade no território brasileiro e são fundamentais para o acesso da população ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Um recurso subaproveitado, na opinião do professor Ricardo Rodrigues Teixeira, do departamento de medicina preventiva da Faculdade de Medicina da USP.

"A atenção primária não foi privilegiada na pandemia. A resposta brasileira foi centrada no hospital. É fundamental, mas não previne. Você evita que as pessoas não morram, mas a fila de UTI está aberta."

Segundo Teixeira, a estratégia, no momento, deveria ser expandir redes de atenção primária. Ele diz que há um "cenário previsível de aumento de pressão" sobre elas.

"Já sabemos que as ondas de condições crônicas complicadas e transtornos mentais virão com certeza e encontrarão serviços muito aquém de suas condições de resposta."

Os agentes, afirma, "permanecem sendo peças-chave para detectar toda essa ordem de problemas e as sequelas [da Covid-19], especialmente aquelas mais graves".

No começo da pandemia, a agente Girlene Damasceno Carvalho, 48 anos, que trabalha na Boca da Mata, em Salvador (BA), teve de ser criativa para lidar com a resistência da população ao atendimento e ao isolamento social.

Procurou uma nova solução ao perceber que os EPIs não bastavam para estabelecer uma relação de confiança com a população diante da nova realidade. "Peguei um megafone e fui para a rua falando, explicando". Na sua avaliação, a resistência foi quebrada.

Passados oito meses, tem percebido um afrouxamento no isolamento e no distanciamento social. "Eu acho que o governo, o estado estão pecando em divulgar que o vírus não tem cura. Está meio relaxado em relação a isso. A mídia tem que estar em cima."

O seu medo, ela conta, aumentou desde que o distanciamento social foi relaxado.

"Tem pouco tempo perdi uma colega de 42 anos, deixou um filho de 10. Nós que trabalhamos queremos a cura o mais rápido possível. Às vezes chega gente sem máscara no posto. Eu falo: 'Cuide do senhor, que é para o senhor cuidar da gente.' Ando com máscara na bolsa. Se eu pudesse eu saía de porta em porta distribuindo máscara."

Ela conta que a tecnologia tem sido sua aliada no monitoramento de sua comunidade, mas, se preciso for, pega o megafone novamente para falar sobre a importância do uso de máscara, do distanciamento e até da vacinação.

"Eu já tenho até ideia: a gente ir por área vacinar todo mundo em casa", disse. "Se preciso for, eu faço, sim. De dia, de noite, a hora que for. Eu quero que nós todos tenhamos saúde."

Este texto é parte de uma série que mostra o envolvimento dos servidores públicos no combate à Covid-19. É uma parceria entre a Folha e a República.org, organização social, apartidária e não corporativa, dedicada a contribuir para a melhoria do serviço público no Brasil.

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