Pensamento indígena leva a questionar a monogamia, diz psicóloga Geni Núñez

Escritora guarani teve livro entre os mais vendidos da Flip e diz que não se pode ser dono de terras nem de pessoas

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mulher indígena sorri com adereço de penas na cabeça em meio a plantas

A ativista e escritora Geni Núñez Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

Geni Núñez foge do óbvio. Aos 32 anos, a psicóloga e acadêmica guarani divide seu tempo entre a escrita profissional sobre sexualidade e amor não monogâmico e as sessões de escuta psicanalítica com grupos de indígenas.

Seu livro "Descolonizando Afetos" foi um dos dez mais vendidos na última Flip, lado a lado com nomes como Itamar Vieira Junior e Socorro Acioli. Lançada em outubro pela Planeta, a obra une reflexões e poemas a pesquisas históricas sobre a colonização jesuítica do Brasil.

O prestígio de ver a obra nas sacolinhas de compras da badalada feira literária surpreendeu Núñez, mas menos do que a resposta de Ailton Krenak ao convite para escrever duas ou três linhas com suas impressões para a capa do livro.

O novo imortal da ABL retornou o pedido com um prefácio completo, em que exalta a sensibilidade da autora para mergulhar na história de seu povo e apresentar aos leitores uma compreensão indígena do amor, sem amarras ou senhores.

Quem buscar na obra truísmos sobre liberdade sexual ou reafirmação da importância do amor-próprio vai se decepcionar. "Não precisamos de mais reforço de hierarquia, precisamos justamente de acolhimento à nossa pequenez", defende Núñez. "Não estamos em perigo se quem amamos beija outras pessoas."

O que a levou, como uma mulher indígena, a escrever sobre não monogamia?
Como psicóloga, percebo que as pessoas estão muito feridas, muito machucadas pelo jeito dominante de se relacionar e viver. A maioria nem sequer sabe que há outras possibilidades.

Um dos objetivos do meu trabalho é dizer que já existem outros mundos possíveis, e não é uma utopia. Tenho nomeado isso como reflorestamento de imaginário.

É pensar que, assim como a terra quando atingida pela monocultura só tem uma resposta, também a gente é levado a pensar numa única via. Insisto que a vida das pessoas vá além dessa monocultura.

Como suas experiências amorosas mais marcantes influenciaram sua visão sobre monogamia?
Nós [indígenas] temos uma visão mais alargada sobre amor e não monogamia. A ideia de propriedade privada não é parte da cosmogonia do nosso povo.

Isso inclui até mesmo o julgamento do marco temporal, em que se questiona quem é o dono da terra. É uma pergunta que é problemática na sua própria construção, porque a gente não acredita que é possível ser dono. Nem do rio, nem da montanha, nem de outras pessoas.

Quando penso nas relações pessoais que me inspiraram, penso em relações de amparo e suporte que recebo do meu povo, da minha família, dos meus parentes [indígenas]. Isso tudo fortalece muito. O caminho de descolonização dos afetos não tem como ser individual. Todas essas relações, para mim, são relações amorosas.

Em relações afetivas sexuais vejo que, para mim, questionar uma monocultura envolveu o questionamento de várias outras, porque não sou uma pessoa heterossexual, por exemplo. E dentro de espaços evangélicos, que muitos dos nossos povos são obrigados a frequentar, escutamos: "Você tem que escolher se é homem ou mulher, se deseja homem ou mulher…"

Claro que também temos inseguranças, medos e ciúmes. Mas o convite não é para não sentir, mas sentir tudo isso sem que seja algo destrutivo para si e para o outro.

A dor do preterimento, de ser trocada ou substituída por outra, é uma fonte de angústia e sofrimento para a maioria das mulheres em algum momento da vida, especialmente quando se é parte de alguma minoria. Como vê isso?
Na minha escuta clínica, noto que é muito comum que as mulheres por vezes conjuguem essas questões sem pegar a voz para si: "O que será que ele quer, o que será que ele vai desejar?".

Nossas próprias questões acabam secundarizadas. O convite não é a ter uma vida sem dor, o que é improvável, mas que repensemos que alguns modelos produzem essas dores.

Analiso a partir da etimologia a palavra "solteiro", que vem de "sozinho". Muitas vezes, temos várias outras relações de afeto, de amparo, de amor. Mas como não cabem nesse enquadramento [do amor romântico], parece que a vida foi um fracasso. Ou que aquilo que se transforma deu errado.

Essa é a influência da lógica cristã nas relações. Mas a grande inspiração para o cristianismo é o platonismo, então, falar de amor romântico é falar também desse ideal de eternidade, fixidez e imutabilidade. E esses três critérios desclassificam a vida, pois ela é justamente o oposto disso.

Não devemos entender a transformação como um fracasso, mas como o movimento da vida, é um jeito de honrar nossa história e o tempo que vivemos com as pessoas. Dizemos que Guarani é um povo em movimento.

No livro, você fala da beleza como lugar de poder e do sofrimento que vem da sensação de não pertencer. Acha que a abertura para padrões de beleza mais diversos e menos eurocêntricos tem abarcado efetivamente também as populações indígenas?
É um movimento duplo, em que o racismo persiste e se agrava, mas há também a resistência a ele. Vemos a construção da autoestima de forma diferente: através da relação com a espiritualidade, a sensualidade, a alimentação, as pinturas, danças, cantos. Ela passa por tudo isso.

Então deixa de ser algo de um trabalho individual, de quase um dever da pessoa se amar e se acolher, para uma tarefa que se coloca mais no coletivo.

Você tem 318 mil seguidores no Instagram. O que a levou para as redes sociais?
Nos últimos três anos, houve aumento do interesse pelas perspectivas indígenas. Nas redes, ao mesmo tempo que falo sobre o reflorestamento do imaginário, me interessa muito que o meu trabalho esteja fortalecendo o reflorestamento que acontece nas aldeias, por exemplo.

O debate sobre não monogamia é também uma maneira que encontrei de fortalecer a luta dos nossos povos, pois talvez muitas pessoas não se aproximassem das nossas lutas por outras vias.

Você escreve sobre como a lógica cristã colonizou o afeto com a ideia da união monogâmica como única alternativa. Mas as redes sociais também têm colonizado o imaginário de certa forma, reforçando estereótipos e ideais inatingíveis sobre beleza e amor, por exemplo. Como vê essa contradição?
É complexo, porque essas estruturas são muito atravessadas pelo capitalismo, pela exploração da natureza e de vários grupos. É uma relação muito controversa.

Como movimento indígena, temos tentado fazer o seguinte: já que as mídias hegemônicas sempre estiveram contra nós, e muitas vezes não havia possibilidade de uma contranarrativa, temos buscado ocupar esse espaço como parte dessa disputa.

Ressalto também como é recente essa presença de vários artistas indígenas nas redes. É um espaço de colonização, mas de alguma maneira tentamos hackeá-lo um pouquinho.

Descolonizando afetos

  • Preço R$ 48,70 (192 págs.); R$ 31,43 (ebook)
  • Autoria Geni Núñez
  • Editora Planeta

RAIO-X

Geni Núñez, 32

Escritora e ativista guarani, é psicóloga, mestre e doutora em psicologia social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Em 2023, publicou o livro infantil "Jaxy Jaterê: O Saci É Guarani" (Harper Kids), e "Descolonizando Afetos: Experimentações sobre Outras Formas de Amar" (Editora Planeta). É membro da Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos e da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia.

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