Descrição de chapéu Coronavírus

Vacinação em SP não prioriza bairros com mais mortes por Covid-19

Pesquisa da USP mostra que imunização é maior em bairros mais ricos e menos afetados pela pandemia

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São Paulo

As desigualdades observadas desde o início da pandemia de Covid-19 na distribuição de internações e óbitos pelo país, com maior concentração de casos nas regiões mais pobres, ocorrem também na campanha de vacinação contra a doença.

Uma análise do LabCidade, laboratório da USP que acompanha políticas públicas em São Paulo, mostra que a priorização dos mais velhos na vacinação na capital paulista resultou em uma taxa muito maior de imunizados nas regiões onde se concentra uma população branca, com mais renda e que não foi a mais afetada pela Covid-19.

A Prefeitura de São Paulo segue as recomendações dos planos nacional e estadual de imunizações, que são ancoradas em critérios como faixa etária, comorbidades e ocupações, mas não consideram os territórios mais atingidos por internações e mortes.

Outros estudos, como um epidemiológico da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), já mostraram que os índices de mortalidade por Covid são mais altos nas áreas de maior vulnerabilidade social e que, por isso, elas deveriam ganhar prioridade na escala de vacinação. Mas isso não avançou.

A análise do LabCidade, a partir de dados do Ministério da Saúde, mostra que até o dia 17 de maio 16% ou mais de moradores de bairros paulistanos mais ricos como Moema (zona sul), Pinheiros (zona oeste) e Consolação (área central) tinham sido vacinados pelo critério etário com uma dose da vacina. Nesses bairros, a mortalidade por Covid ficou entre 10 e 20 casos por 10 mil habitantes.

Já nos bairros mais pobres e com uma concentração maior de negros, como Cidade Tiradentes (zona leste de SP), Parelheiros (zona sul) e Jaraguá (zona noroeste), de 4% a 8% da população tinha sido vacinada pelo critério etário, taxas de duas a quatro vezes inferiores às dos bairros mais ricos. Essas regiões registraram 50 mortes ou mais por 10 mil habitantes.

“Desde o início da pandemia, a gente vem avisando: ‘gestor público é preciso olhar o território, os lugares mais afetados, para construir estratégias de combate da epidemia.’ Tem que combater o foco do contágio. Infelizmente, os nossos alertas não têm sido ouvidos”, diz Aluízio Marino, pesquisador do LabCidade.

Em comum, os locais mais afetados pela Covid têm moradias mais precárias, especialmente favelas e cortiços, o que aumenta o risco de contágio. Também concentram trabalhadores que não puderam ficar em casa isolados, como empregadas domésticas, entregadores e garis, e que dependem do transporte público, muita vezes lotado, para se movimentar pela cidade.

Um estudo da Unifesp, em parceria com a Fundação Tide Setubal, apontou que, nos bairros com maior número de usuários de transporte coletivo, 80% dos óbitos por coronavírus podem estar relacionados à necessidade de deslocamento. Entre as dez regiões da capital com mais mortes pela doença, nove são líderes no número de viagens em ônibus, trem e metrô.

“O espaço em que caberia uma pessoa vai cinco. Em Itaquera, tem de entrar empurrando, não tem como se mover. Eu me sinto bem impotente, não acho justo. Não fui infectado ainda pelo coronavírus por sorte", diz o assistente financeiro Igor Esteves, 28, que pega ônibus, trem e metrô para ir de São Miguel Paulista, na zona leste, até o trabalho, na av. Faria Lima, zona oeste.

De acordo com Aluizio Marino, do LabCidade, ainda é possível intervir na desigualdade vacinal incluindo categorias profissionais que desempenham atividades essenciais e continuam fora das prioridades da campanha, como os garis e as empregadas domésticas.

“A primeira morte por Covid em São Paulo foi de uma empregada doméstica da Cidade Tiradentes. Assim como essa, há muitas categorias que não puderem parar e que não foram incluídas nas prioridades. Ainda dá tempo de proteger essas pessoas.”

A diarista Rosana Aparecida Urbano, 57, morreu no dia 12 de março de 2020. Um dia antes, ela tinha percorrido 25 km para ver a mãe, que estava internada com Covid em um hospital da zona leste. Diabética e hipertensa, passou mal ao saber que a mãe estava intubada e foi internada no mesmo local. Morreu no dia seguinte também de Covid. Deixou três filhos e o marido, auxiliar de limpeza.

Desde abril, o Ministério da Saúde incluiu os garis nos grupos prioritários da vacinação e alguns locais, como o Distrito Federal e o Rio de Janeiro, já estão imunizando esses profissionais. Mas em São Paulo eles continuam de fora. No início de junho, a categoria fez greve para reivindicar a vacinação, mas ainda não foi atendida.

Segundo o Siemarco, sindicato da categoria, cerca de 2.000 funcionários já foram infectados pela Covid-19 desde o início da pandemia e pelo menos 50 morreram em decorrência da doença. A maioria dos trabalhadores (60%) é negra.

Um estudo liderado pela médica Fátima Marinho, pesquisadora sênior da Vital Strategies, apontou que a Covid tem sido muito mais mortífera entre as pessoas negras, especialmente as mais jovens, do que entre as brancas no estado de São Paulo.

Para ela, essa é mais uma razão para que os jovens das periferias sejam priorizados na vacinação porque estão mais expostos ao risco de infecção pela Covid-19.

Seja pela ocupação, entregadores, balconistas, seja na escola, que são mais precárias e terão que voltar a funcionar em breve, seja pela dificuldade de distanciamento social [alta densidade domiciliar, no transporte público e na comunidade], é preciso priorizar os pretos e os quase pretos

Fátima Marinho

médica e pesquisadora da Vital Strategies

Na análise do LabCidade, os pesquisadores também relacionam os territórios com maior incidência de Covid-19 às regiões com a maior parte da população negra. “Os critérios da campanha de vacinação adotados até o momento tornam-se mais um exemplo de como opera o racismo estrutural em nossas cidades”, escrevem os autores.

O médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, pesquisador da USP, defende que ainda dá tempo de olhar a população vulnerável da capital e priorizá-la na vacinação. Na sua opinião, critérios pouco objetivos, como os usados na imunização de pessoas com comorbidades, deram margem a fraudes. “A população que tinha acesso a atestado médico, que tinha amigo médico, arrumou atestado de tudo que foi jeito e passou na frente, infelizmente.”

Porém, para Dourado, todas essas questões poderiam ter sido minimizadas se o país contasse com vacinas em doses suficientes e com uma coordenação nacional bem articulada com os municípios.

Prefeitura de SP diz que segue planos de imunização

Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde informou que a campanha de imunização contra a Covid-19 na capital paulista segue critérios dos programas nacional e estadual de imunizações e que priorizou grupos mais vulneráveis, como idosos, indígenas, pessoas com comorbidades ou deficiência, em situação de rua e profissionais de saúde e de outros serviços essenciais.

A campanha avança agora por faixa etária em ordem decrescente. Atualmente, 19,46% dos adultos da capital paulista estão imunizados com as duas doses da vacina. Mais da metade (59,21%) recebeu a primeira dose.

Segundo a secretaria, cabe ao Ministério da Saúde definir as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório, grupos e faixa etária. “O município recebe doses da vacina contra a Covid-19 de acordo com a estimativa populacional elencada e, caso estes critérios não sejam rigorosamente cumpridos, poderão ocorrer desabastecimentos e falta de vacina ao público prioritário”, diz a nota.

Destaca também que desenvolve ações preventivas junto à população em todas as regiões da cidade e, na Sul, onde estão os distritos com mais casos da doença, foram realizadas, mais de 10 mil ações de combate à Covid-19 pelas equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF).

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