Programa de análise de genes de doenças raras esbarra em falta de verba e estrutura

Iniciativa é vista como fundamental para tratar enfermidades; Ministério da Saúde diz que investirá R$ 100 milhões

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Belo Horizonte e São Paulo

O Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, quer ampliar o número de pessoas atendidas pelo programa Genomas Raros, que faz o sequenciamento genético de doenças raras no Brasil.

Neste ano, foi cumprida a meta de sequenciar o DNA de 8.500 pessoas. Até 2026, a ideia é atender mais 20 mil.

Segundo João Bosco, médico que coordena a iniciativa, a falta de verbas públicas para ampliação do programa e a escassez de profissionais qualificados atrasam o laudo e análise dos sequenciamentos, além de criar uma lista de espera para novos pacientes.

A analista de laboratório Carolina Dias manuseia reagente no laboratório de genética do Hospital Albert Einstein, em São Paulo
A analista de laboratório Carolina Dias manuseia reagente no laboratório de genética do Hospital Albert Einstein, em São Paulo - Lucas Seixas/Folhapress

O projeto é financiado pelo Proadi-SUS e integra o Genomas Brasil (Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão), criado pelo Ministério da Saúde em 2020 para estabelecer bases de desenvolvimento da saúde de precisão e implementação da modalidade no sistema público.

A meta anunciada no início do programa era de 100 mil sequenciamentos. Há cerca de 13 milhões de pessoas com doenças raras no país.

Bosco explica que sequenciar genomas é essencial para o tratamento e ampliação dos estudos sobre cada doença. "Não faltam pessoas aguardando para ter diagnóstico. Ainda tem uma grande lista de espera de pacientes novos para serem sequenciados", diz.

Monique Cristina, 23, recebeu o diagnóstico de epidermólise bolhosa, uma doença rara que torna a pele sensível, aos três meses de idade. Pela falta de conhecimento dos enfermeiros, ela passou por procedimentos errados ao nascer, como incubadora aquecida e intubação. Ambos geram mais lesões nos bebês com a enfermidade.

Sem plano de saúde, ela depende do SUS (Sistema Único de Saúde) para o tratamento. Um exame genético ajudaria a solucionar dúvidas importantes da sua condição, mas o serviço não é oferecido na rede pública e, até hoje, ela não pôde fazê-lo.

"Falo do meu diagnóstico, mas não tenho certeza se ele é correto. Nunca tive oportunidade de saber a verdade", diz. O preço na rede particular chega a R$ 5.000.

Para Adriana Carvalho, coordenadora da Renomica (Rede Nacional de Genômica Cardiovascular) do INC (Instituto Nacional de Cardiologia), a entrada dessas análises no SUS garantirá o acesso tanto para os usuários do sistema quanto para as pessoas que utilizam a saúde suplementar.

A estratégia também diminui gastos públicos com consultas e exames, já que a pessoa passa a ser tratada efetivamente desde o diagnóstico. Pesquisas de custo-efetividade como essa também estão sendo conduzidas no Einstein para doenças raras em crianças na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) neonatal.

Além da fila de espera para o sequenciamento, há atraso na conclusão do laudo e do diagnóstico. Isso acontece pela falta de especialistas no programa Genomas Brasil, como bioinformatas, que analisam grandes volumes de dados de genômica, e médicos geneticistas.

O médico geneticista é o responsável pelo acompanhamento genético e pode fazer o laudo e a análise do sequenciamento. "Faltam pessoas com expertise de análise genômica e de aconselhamento genético. Essa é a parte final, depois que o genoma está pronto para que seja feita a interpretação", completa Bosco.

Segundo o mapeamento Demografia Médica no Brasil (2023), a medicina genética tem 342 profissionais — especialização com o menor número no país. É menos de um a cada 100 mil habitantes, sendo que 55,5% deles estão no Sudeste. No Norte, o número cai para 1,7%.

Entre as razões da dificuldade de contratação, está a remuneração. A bolsa CNPq de pós-doutorado júnior é de R$ 4.100 e a de desenvolvimento tecnológico e industrial (categoria A), de R$ 5.200. A rede privada oferece o dobro desses valores. Esses profissionais também são melhor remunerados por empresas internacionais.

Carvalho afirma que a rotatividade dos profissionais atrasa a emissão dos laudos no Renomica. "É um problema seríssimo do sistema de pesquisa do Brasil hoje", diz. Das 570 amostras sequenciadas no INC, 280 ainda esperam o laudo.

O Genomas Raros também enfrenta esse problema: dos 8.500 genomas sequenciados, apenas 3.500 tiveram os dados foram liberados.

A Beneficência Portuguesa de São Paulo, responsável pelo Mapa Genomas Brasil, que também integra o Genomas Brasil, está qualificando profissionais do SUS em saúde de precisão. São 375 pessoas, sendo 300 na atenção primária e 75 na especializada.

"A ideia é ampliar esse processo não só para coleta de dados, orientação e aconselhamento genético, como também para bioinformatas. É bastante raro no país hoje pessoas que saibam trabalhar com essa quantidade absurda de dados", diz Gustavo Guimarães, coordenador do projeto.

De acordo com os coordenadores entrevistados, a logística de armazenamento dos dados ainda é individual e temporária. Não existe um banco unificado, que armazene todas as informações de cada hospital e centro participantes da iniciativa.

A Fiocruz Bahia foi contratada para desenhar esse projeto. Por enquanto, o Ministério da Saúde orientou cada unidade de pesquisa a armazenar seus próprios materiais.

"É importante, porque enquanto a plataforma não acontece, a comunidade científica não consegue ter acesso aos meus dados, só quem participou do projeto tem", diz Bosco, do Einstein. Ele também explica que isso atrasa estudos sobre novos medicamentos e tratamentos.

Procurado, o Ministério da Saúde afirmou que a atual gestão vai priorizar o fortalecimento do setor de pesquisas e desenvolvimento de novas tecnologias. Para isso, a pasta diz que investirá R$ 100 milhões em pesquisas sobre Saúde Pública de Precisão, como parte do Programa Genomas Brasil, sem dar detalhes sobre repasses.

Como funciona o sequenciamento genético

Os métodos e prazos escolhidos em cada etapa variam de acordo com os projetos.

Projeto de pesquisa
É criado e enviado, por escrito, para uma agência de fomento ou órgãos do governo (como os ministérios da Saúde e da Ciência, Tecnologia e Inovação).

Financiamento
A proposta é analisada e, caso aprovada, o recurso é liberado.

Escolha do paciente
Médicos ou pesquisadores procuram por pessoas que se encaixem nos critérios da pesquisa.

Coleta de DNA
Amostra de sangue ou saliva é coletada e enviada aos pesquisadores.

Análise e sequenciamento
Cientistas começam a avaliação da amostra e sequenciam o DNA.

Laudo e devolutiva
Quando finalizado, o exame é interpretado por um especialista em biotecnologia, o qual analisa os dados e produz o laudo. Em seguida, o paciente recebe o resultado. A entrega pode ser online ou física, a depender do método de cada pesquisa.

Esta reportagem foi produzida durante o 8º Programa de Treinamento em Jornalismo de Ciência e Saúde da Folha, que conta com o apoio do Instituto Serrapilheira, do Laboratório Roche e da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein

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