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Feministas cristãs pedem mais políticas públicas para debater aborto legal

Católicas e evangélicas se organizam em grupos que defendem autonomia da decisão da mulher sobre gestação

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São Paulo

O que levou a socióloga Maria José Rosado, a ex-freira Zeca, a se organizar dentro da Igreja Católica para defender o direito de toda mulher ao aborto?

Bom, não foi da noite para o dia que essa feminista cristã decidiu peitar uma posição histórica do Vaticano. Mas uma história a marcou mais do que todas as outras.

Ela já havia ajudado a fundar a Católicas pelo Direito de Decidir, ONG que desde 1993 questiona leis eclesiásticas sobre os direitos reprodutivos e a autonomia feminina sobre o corpo, quando conheceu a história de uma mulher atendida no Hospital Jabaquara, em São Paulo. Foi ali que, em 1989, a gestão da então prefeita Luiza Erundina começou um pioneiro programa de aborto legal na América Latina.

Ato pela descriminalização e legalização do aborto na América Latina e Caribe, em São Paulo - Bruno Santos - 28.set.2023/Folhapress

Essa paciente que tanto impactou Zeca havia contado, numa entrevista, que já era mãe de um casal de adolescentes. "Ela gerou ambos os desejando muito. O que tinha na barriga eram seres humanos que queria trazer ao mundo."

Certa madrugada, a caminho do trabalho, ela foi estuprada e engravidou. "Dizia que o que tinha dentro dela não era um ser humano, era outra coisa que só queria que tirassem de dentro dela."

A interrupção de uma gestação que seja potencialmente fatal para a mulher ou fruto de um estupro é admitida desde 1940 no Código Penal brasileiro. Em 2012, o STF (Supremo Tribunal Federal) também descriminalizou procedimentos se o feto fosse anencéfalo. Mas, nos últimos anos, até mesmo esses três casos previstos numa dura legislação antiaborto estão na mira de movimentos conservadores, muitos com alta voltagem religiosa.

Entre os países da região em outra maré estão Argentina, México e Colômbia, que pelo caminho legislativo ou jurídico descriminalizaram a paralisação da gravidez em mais cenários.

É aí que entram a católica Zeca e as evangélicas Simony e Bebel, parte de uma minoria que se identifica com bandeiras progressistas indigestas nos círculos cristãos brasileiros.

Simony dos Anjos, evangélica, feminista e a favor do direito ao aborto - Bruno Santos/Folhapress

Pesquisa Datafolha de 2023 mostra que a rejeição ao aborto cresce sobretudo entre fiéis evangélicos —54% discordam totalmente da frase "o aborto deve ser um direito da mulher", contra 39% da média nacional. A parcela católica é próxima do quadro geral, mas a contrariedade dispara se excluirmos o mundaréu de católicos não praticantes e considerarmos grupos mais engajados do segmento, como a Renovação Carismática.

Mas quem é que aborta? Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto de 2021, feita com 2.000 entrevistadas de 18 a 39 anos, essa mulher pertence a todas as raças, classes sociais e religiões. Entre as que haviam suspendido uma gravidez, a proporção de brancas e negras, e também de cristãs e mulheres sem religião, era praticamente a mesma: 1 em cada 10.

Parte do movimento Evangélicas pela Igualdade de Gênero, Bebel Lourenço se via numa dupla sinuca de bico ao se revelar crente para coletivos feministas e se apresentar como feminista nas igrejas. Os dois lados torciam o nariz para essa outra identidade, o que não faz sentido para ela. "Minha fé nunca entrou em conflito com meus valores sociais. Pelo contrário, a verdade irrefutável do amor salvífico em Cristo sempre me conduziu para o enfrentamento das disparidades de gênero, classe e cor."

Não seria diferente com a causa do aborto, "revestida dogmaticamente de muita culpa e condenação às mulheres", embora "nenhum desses argumentos tenha procedência bíblica", diz. "Não há condenação moral ou espiritual à interrupção da gestação para os povos descritos nos livros bíblicos. O que há é apropriação do discurso romantizado pró-vida, em favor da ‘família’, mas que negligencia as meninas-mães violadas e com gravidezes de risco, e as demais situações críticas desencadeadas por gestações não planejadas."

A adesão ao feminismo cristão nos templos ainda é pequena. O mesmo não se pode dizer sobre sua rejeição —é comum ouvir de pastores e também pastoras que as demandas feministas são costelas de uma cartilha progressista incompatível com o cristianismo.

As barreiras para essas mulheres de fé extrapolam a redoma religiosa. A ONG Católicas pelo Direito de Decidir, por exemplo, teve que lutar na Justiça para poder manter o "católicas" no nome, após uma ação proposta por um grupo ultraconservador do segmento argumentar que a doutrina do Vaticano é contra o aborto.

Para Bebel, é simples assim: "Meu útero é laico, não deve estar sob a tutela do Estado, muito menos da igreja".

Não que isso implique numa decisão fácil para mulher alguma. "Ser favorável ao aborto ninguém é", afirma a antropóloga Simony dos Anjos, da Rede de Mulheres Negras Evangélicas. Mas sejamos realistas: estamos diante de uma epidemia na saúde pública, e discutir se um amontoado de células na primeiríssima fase da gravidez tem tanta vida quanto um feto prestes a nascer "é uma maneira de desviar do real debate", diz.

"Não é a Bíblia que deve direcionar políticas de saúde pública. Enquanto a gente está aqui debatendo teologicamente, tem mulheres interrompendo a gestação de maneira insegura", afirma Simony.

Para Zeca, o polo que se diz pró-vida tem como estratégia "confundir e tratar tudo como se fosse igual", o embrião recém-fecundado, o feto já em estágio avançado e o bebê nascido. "As fotos que eles levam para eventos são absolutas mentiras, mostram fetinhos de plástico para dizer que é isso que está na barriga da mãe com um mês de gravidez."

Se nem a ciência, nem a religião conseguem traçar uma linha inquestionável sobre onde começa o que entendemos por vida, "o poder público tem que definir alguma coisa que crie políticas públicas tanto para a mulher que quer abortar quanto para a que quer manter a gravidez até o fim", afirma a socióloga.

"Sempre conto a história de uma moça que se descobriu com um feto anencéfalo. Ela decidiu que queria continuar a gestação e teve esse direito respeitado. O filho nasceu, e ela o enterrou."

Quem não é respeitada, diz, é a mulher que opta pelo aborto, e olha que muitas vezes estamos falando do procedimento autorizado por lei —que passou a ser questionado por uma fatia da comunidade cristã, que entende que o feto não deve pagar pelos crimes do pai violador em caso de estupro, por exemplo.

Em 2023, a Globo, maior emissora do país, estreou sua primeira novela com uma protagonista evangélica e, lá pelo meio da trama, insere esse tema tão espinhoso. Uma cena de "Vai na Fé" traz uma grávida vítima de abuso sexual que acaba recorrendo a uma clínica clandestina após o sistema de saúde a deixar na mão. Acaba presa no hospital.

Em outro trecho, a filha da mocinha da trama se declara contra o aborto mesmo quando há estupro envolvido. Outra personagem rebate: é tortura impedir que uma mulher seja obrigada a carregar no ventre a lembrança de algo tão atroz. Só não sabe que a jovem contrária ao direito é ela própria filha de uma mulher que foi dopada e então abusada pelo seu pai, o que a faz refletir que, se a mãe tivesse abortado, ela não teria a chance de existir.

Feministas cristãs reconhecem o tanto de complexidade embutida numa contenda que acaba reduzida a um fla-flu ideológico. O que não vale é ser hipócrita de se colocar como arauto pró-vida mas atropelar iniciativas fundamentais para garanti-la à mulher que quer parir, diz Simony.

Ela cita parlamentares favoráveis à Reforma Trabalhista de 2017, que estabeleceu a exigência de atestado médico para afastar gestantes e lactantes de atividades insalubres. Dois anos depois, o STF derrubou a cobrança do parecer médico.

Muitos desses políticos apoiam o Estatuto do Nascituro, projeto de lei que equipara o embrião a uma pessoa já nascida —uma das implicações práticas poderia ser anular o aborto legal no país.

"Prefiro mil vezes questionar esse defensor do nascituro sobre a defesa da gestante que não se alimenta bem, não tem um bom pré-natal", afirma a antropóloga. "O terrorismo moral faz com que as mulheres se sintam extremamente culpadas e julgadas."

Esta reportagem é publicada como parte do projeto "Towards Equality", uma iniciativa internacional e colaborativa que inclui 16 veículos de imprensa para apresentar os desafios e soluções para alcançar a igualdade de gênero.

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