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Mulheres enfrentam recusa médica e humilhações para acessar aborto legal no Brasil

Brasil tem hospitais de referência em menos de 2% dos municípios, fazendo com que muitas tenham que viajar centenas de quilômetros

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Aos 26 anos, Giulia pretende ir à Justiça para conseguir o aborto legal Jarbas Oliveira/Folhapress

São Paulo

A universitária Angela, 24, e a técnica em segurança Cristina, 29, foram vítimas de estupro e engravidaram. Já a bacharel em direito Ana, 26, esperava ansiosamente pela terceira filha quando soube que a gestação colocava em risco sua vida.

Os casos permitiriam que elas fizessem aborto, segundo a legislação vigente. Mas as três mulheres, que não quiseram ser identificadas, tiveram dificuldade ou não conseguiram realizar o procedimento. Chegaram, então, à mesma conclusão: o aborto não é garantido às mulheres brasileiras mesmo quando é um direito.

O Brasil permite a interrupção da gestação quando há gravidez resultante de estupro, risco à vida da gestante ou se constatada anencefalia fetal. Há decisões judiciais que indicam que a malformação incompatível com a vida também justificaria o aborto.

Giulia é mãe de dois filhos e está grávida de um bebê com malformação fetal - Jarbas Oliveira/Folhapress

Os relatos de mulheres que buscaram o procedimento pelo SUS (Sistema Único de Saúde) mostram que, mesmo em casos permitidos, elas podem ficar à mercê de médicos e juízes. Elas descrevem situações de humilhação, constrangimento, fanatismo religioso, dificuldade de acesso a informações sobre o aborto legal e a hospitais que fazem a intervenção, além de longas viagens para ter acesso ao procedimento.

Para Ana Elisa Bechara, vice-diretora e professora de direito penal da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), na prática, o aborto legal sofre muitas restrições.

"Há poucos lugares que fazem o procedimento e ainda há dúvidas, inclusive por parte dos agentes públicos envolvidos, sobre como os casos devem ser conduzidos", afirma.

No total, 2.946 mulheres realizaram o aborto por vias legais em 2023. O Brasil tem 155 hospitais de referência para a realização da intervenção. Eles ficam em menos de 2% das cidades do país. Conforme resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina), profissionais de saúde podem se negar a participar da intervenção caso não concordem ideologicamente.

A estudante de geografia Angela descobriu no início de fevereiro que estava grávida. Moradora de Belém (PA), foi vítima de estupro em uma viagem ao Rio de Janeiro. Continuar com a gestação, que completava 13 semanas, não era uma opção.

Antes de saber que poderia ter acesso ao aborto legal no Brasil por meio da ONG Milhas pelas Mulheres, que auxilia quem deseja interromper a gestação dentro e fora do país, planejava comprar pílulas abortivas no mercado ilegal ou ir à Argentina fazer o procedimento, descriminalizado no país em 2020.

Foi aconselhada, então, a procurar o Hospital Santa Casa, em Belém. Na recepção, segundo Angela, foi recusada quatro vezes. Insistiu e foi encaminhada para a maternidade, onde uma médica alegou que era tarde demais para fazer o procedimento.

O Código Penal não prevê limite de tempo gestacional para a intervenção, mas o assunto é objeto de disputa política e judicial.

Com o aborto autorizado, teve que esperar dois dias na maternidade para que fosse realizado.

"É uma situação horrível. Enquanto eu precisava de um atendimento bem específico, estava com um monte de grávidas e bebês ao meu redor. É tortura. Lembro que uma mulher ficou sentada na minha frente e me encarava. Ela falou: ‘Tu vai tirar o neném?’. Não tive reação, falei que não", relata.

Ao término da intervenção, uma enfermeira disse a ela que não gostaria de ter participado, uma vez que era católica.

"A gente busca ajuda, mas é torturada ao mesmo tempo", diz Angela.

Esse tipo de atendimento é o "feijão com arroz" do aborto legal, diz Juliana Reis, fundadora da ONG Milhas pelas Mulheres. Dias antes, diz Reis, outra mulher auxiliada pela organização precisou ser internada no mesmo hospital para realizar o procedimento pela segunda vez.

"Conseguimos que ela tivesse acesso depois de ameaçar ir ao Ministério Público. Mas [depois] mandei mensagem perguntando se estava bem, e ela respondeu que continuou grávida. Precisou voltar ao hospital e fazer novamente", relata.

Procurada, a Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará afirma, em nota, que segue todas as diretrizes legais do Ministério da Saúde relacionadas à interrupção da gravidez com amparo legal, prestando assistência multidisciplinar, incluindo orientação aos profissionais.

Na Bahia, Cristina teve que percorrer quase 300 km para interromper uma gestação fruto de estupro. Saiu de Senhor do Bonfim, no interior do estado, até Feira de Santana, na região metropolitana de Salvador.

Foi admitida no hospital e chegou a receber uma pílula abortiva, até que, na troca de plantão, a nova médica se recusou a atendê-la, diz ela. Após insistência, conseguiu realizar a curetagem –que retira os resíduos fetal, placentário e endometrial. Descobriu, dias depois, em uma consulta com ginecologista, que o feto ainda estava em seu útero.

Procurada, a Secretaria de Saúde da Bahia afirma que o serviço de aborto legal é oferecido conforme a lei e, quando ocorrem fatos que fogem à normalidade, eles são investigados conforme as normas administrativas.

Relatos ouvidos pela Folha também indicam que mulheres muitas vezes nem sequer são aceitas em hospitais de referência. É o caso de Ana, que se viu obrigada a viajar de Porto Alegre à Argentina para interromper a gestação. Mesmo com sua vida em risco, não conseguiu realizar o procedimento no Brasil.

Após descobrir a gravidez em dezembro, recebeu uma indicação médica para a realização do aborto, já que ela tinha apenas 30% do coração funcional. Ainda assim, foi rejeitada em três hospitais da capital gaúcha.

No primeiro local, o Hospital Presidente Vargas, um médico afirmou que não iria "colocar o CRM em risco", caso ela precisasse de uma UTI (Unidade de Terapia Intensiva).

Com outra indicação médica em mãos, foi encaminhada ao Hospital das Clínicas de Porto Alegre. Enquanto aguardava para realizar o procedimento, já com roupa adequada para a cirurgia, um médico disse que refez seus exames e que ela estava apta para ter a criança, conta ela.

No Hospital Fêmina, uma primeira avaliação dos laudos médicos reafirmou a indicação do aborto. Após ser novamente internada e ter exames refeitos, Ana ouviu que tinha 32% do fluxo cardíaco, e que, para fazer o procedimento, precisava ter no máximo 30%.

No Código Civil, não há delimitação sobre o que seria um risco à vida da gestante.

"Não estão nem aí. Só não querem que eu morra no hospital por aborto. Se morrer por gravidez, não tem problema, é aceito pela sociedade."

A instituição afirma que seguiu a regra e não entendeu que havia indicação para o procedimento. '"O hospital é referência no atendimento à saúde da mulher e segue rigorosamente todas as determinações legais específicas, comprometidos com o rigor científico".

Sem tempo hábil para judicializar o caso, Ana fez o procedimento na Argentina. Gastou cerca de R$ 7.000. "Foi totalmente diferente. Tive um apoio absurdo."

Procurada, a Secretaria de Saúde de Porto Alegre, que administra o Hospital Presidente Vargas, afirmou que diante do quadro de saúde da paciente, com risco eventual de complicações que necessitassem de UTI, considerou-se que interrupção seria mais segura se realizada em hospital geral. "Por isso, foi feito contato com o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, que aceitou receber a paciente para a realização do procedimento".

O Hospital das Clínicas afirma que age sempre com pleno respeito às pacientes e às normativas e recomenda que denúncias sejam encaminhadas por meio dos canais oficiais para apuração.

Tema de disputa judicial são casos de malformação fetal incompatível com a vida, quando bebê não tem chances de sobrevivência fora do corpo da mulher. A decisão de 2012 do STF sobre anencefalia é usada como justificativa para este tipo de caso, sob o argumento de que são análogos.

É o que Giulia está fazendo em Fortaleza (CE). Mãe de dois meninos, ela recebeu bem a notícia de que geraria uma menina, mas descobriu na 12ª semana que o feto tinha Síndrome de Edwards associada a uma abertura na parte central da parede abdominal.

Ela foi, então, orientada por médicos a "deixar o corpo expulsar naturalmente" o feto. A gestação, porém, está na 17ª semana.

"Não pensava [em abortar]. Mas, diante da situação, achei que era a melhor opção para mim e para o bebê. Acredito que ele também está sofrendo".

Com dois laudos médicos em mãos, ainda organiza papeladas para entrar com ação na Justiça e então saber se poderá realizar o procedimento. A segunda opção é ir à Colômbia, onde o aborto foi descriminalizado até a 24ª semana de gestação.

"A gente tem uma lei que ao mesmo tempo não é uma lei. Os médicos vão decidindo, o juiz decidindo. Depende muito das pessoas. Teoricamente, o Estado é laico, mas na verdade não é."

Procurado, o Ministério da Saúde afirma que trabalha para assegurar às mulheres "um acolhimento adequado e pleno atendimento dos casos de aborto previstos pela legislação brasileira e em conformidade com resolução do STF".

"O governo brasileiro está empenhado em ampliar e redistribuir os serviços de aborto no país", diz a pasta, em nota.

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