Enfermeira segue caminho diferente e chega em segundo na Maratona de Boston

Amadora pedalou às vésperas da prova e não corre mais de 160 quilômetros por semana

Malika Andrews Matthew Futterman
Boston | The New York Times

Para concluir em segundo lugar a Maratona de Boston, treine antes e depois de seus turnos de trabalho, em seu emprego de período integral; jamais corra mais de 160 quilômetros por semana; chegue à cidade alguns dias antes da prova e viaje de carro até o Maine para pedalar no Acadia National Park.

Até segunda-feira, essa era a receita para o sucesso de absolutamente nenhum atleta de elite, na Maratona de Boston. Mas então surgiu Sarah Sellers, enfermeira anestesista que aproveitou as péssimas condições climáticas e virou o mundo dos maratonistas profissionais de cabeça para baixo. É bem provável que nenhum outro atleta tenha percorrido um caminho tão pouco convencional para o segundo posto em um dos mais prestigiosos eventos esportivos do planeta.

Enfermeira Sarah Sellers, à direita, persegue Nicole Dimercurio e Rachel Hyland na Maratona de Boston
Enfermeira Sarah Sellers (à dir.) surpreende ao chegar em segundo na Maratona de Boston - Scott Eisen/Getty Images/AFP

Sellers, 26, iniciou sua jornada para a maratona de modo completamente inocente: o irmão dela ia correr, e achou que seria divertido se ela também participasse. Ela não era maratonista profissional –até setembro, jamais havia corrido uma prova dessa distância–, mas era uma corredora com grande resistência, e teve bom desempenho no atletismo universitário até se ver forçada a deixar o esporte por uma lesão.

Estipulando um novo objetivo, como acontece como muitos maratonistas iniciantes, Sellers treinava antes e depois de seus turnos de trabalho de 10 horas no Centro Médico da Universidade Banner, em Tucson, Arizona, e, para cumprir os requisitos de qualificação para a prova de Boston, se inscreveu na maratona de Hunstville, Utah, perto da cidade onde vive, em setembro.

Ela derrotou 194 outras mulheres, naquele dia, e garantiu presença em Boston. O tempo de prova que ela registrou garantiu vaga na divisão mais rápida na maratona. Mas ela chegou encharcada à linha de largada, e seu único objetivo era não passar vergonha.

E então começou a ultrapassar outras atletas –muitas, muitas atletas. Ela ultrapassou todas as mulheres que estavam participando da prova, exceto a vencedora, Desiree Linden –cuja vitória também foi inesperada, assim como a do professor japonês Yuki Kawauchi entre os homens. Sellers mesma se surpreendeu com seu desempenho.

"Mal consegui acreditar, quando ultrapassei certas competidoras", disse Sellers depois da prova. "Eu as admiro imensamente e de maneira alguma considero estar em nível semelhante ao delas".

Ela fechou a prova com o tempo de 2h44min4s.

Paul Pilkington, o treinador de Sellers, radicado no Utah, assistiu à corrida na TV e teve que atualizar a página de seu computador para ter certeza de que os resultados eram corretos. Em entrevista por telefone, ele disse que sabia que Sellers era "tinha muita garra e e resistência em circunstâncias adversas". Mas "jamais imaginei que ela chegaria em segundo".

CHUVA E VENTO

Talvez a chuva forte e as rajadas de vento tenham minado a energia das competidoras. Talvez o regime heterodoxo de treinamento de Sellers, comparado ao das rivais que são atletas em período integral, tenha funcionado em seu favor. Ou talvez o diferencial tenha sido sua atitude relaxada, sua disposição de competir venha o que vier.

Sellers chegou à região nordeste dos Estados Unidos com o marido, Blake, na noite de terça-feira, e eles foram de carro ao Maine para pedalar. Atletas de elite não costumam fazer esse tipo de coisa.

O plano original de Sellers era de marcar tempo abaixo das 2h37min. Isso permitiria que corresse na olimpíada, se vier a conquistar uma das três vagas femininas para a maratona na seletiva americana para os jogos de 2020. O dia da corrida estava chegando, e as previsões de tempo continuavam horríveis. Sellers não podia se concentrar em conseguir um tempo específico na prova, dadas as rajadas de chuva e vento e as temperaturas gélidas; importaria mais conseguir terminar o percurso.

Mas quando ela apanhou o ônibus que a levaria à linha de largada, em Hopkinton, Sellers disse que se sentia estranhamente calma. Afinal, ainda que não estivesse entre os prováveis vencedores, ela era uma corredora.

Na universidade, ela teve uma carreira atlética sólida, sendo selecionada para participar de campeonatos regionais em diversas ocasiões, pela Universidade Estadual Weber, em Ogden, Utah. Suas especialidades eram os cinco mil e 10 mil metros, e ela também disputava corridas cross country, mas jamais chegou a finais nacionais como atleta individual

Em 2012, ela foi escolhida como atleta feminina do ano pela Universidade Estadual Weber (o atleta masculino do ano foi Damian Lillard, hoje armador do Portland Trail Blazers, da NBA).

Uma fratura navicular por estresse abreviou sua carreira atlética na universidade. Desde então, ela continua a correr para manter a forma, mas não vinha se condicionando para provas.

Para a maratona de Huntsville, ela adotou um regime de preparação de uma semana. Só depois de se qualificar para Boston ela procurou seu treinador na época da universidade e pediu que ele lhe enviasse um regime de preparação adequado. Sellers combinou preparação de velocidade com exercícios de distância e tempo, que são corridas de entre oito e 25 quilômetros em ritmo mais rápido do que o mantido em uma maratona. Ela treinava seis dias por semana, às vezes com duas sessões diárias, e folgava aos domingos.

Ainda assim, ela não correu mais de 160 quilômetros em qualquer semana de preparação, ante os 210 a 225 quilômetros que os maratonistas de elite costumam correr.

Ainda que o clima de Tucson raramente se aproxime das condições gélidas que paralisaram alguns atletas em Boston na segunda-feira, Sellers disse que a mistura entre seu programa de condicionamento e sua vida de trabalho ajudou a prepará-la.

"Quando você treina puxado depois de um longo dia de trabalho, não há como se sentir bem ou confortável", ela disse. "Por isso, de um modo estranho, acabei me acostumando a não me sentir bem, e ainda assim continuar correndo. Acho que isso ajudou".

Depois da maratona de Huntsville, quando ela se inscreveu para a prova de Boston e os organizadores estabeleceram a ordem de partida, com base nos tempos em provas de qualificação, Sellers descobriu que seu tempo de 2h44min27s bastava para garantir posição de partida no grupo feminino de elite. Ela ainda assim teve de pagar suas despesas de viagem e hospedagem, mas pelo menos correria entre as melhores.

SEGUNDO ÔNIBUS

Sellers não chegou à linha de partida em companhia das atletas de ponta. As 20 mulheres com os melhores tempos, conhecidas como John Hancock Elite Athlete Team, viajaram em ônibus separado. Mas Sellers as seguiu no segundo ônibus, com as 36 mulheres com tempos logo abaixo do grupo de elite.

O assunto durante o percurso de uma hora de duração foi a miséria que elas teriam de enfrentar por conta do mau tempo, e a possibilidade de trabalhar em equipe, com atletas se alternando para puxar o grupo, enfrentando o pior do vento. "Havia muita camaradagem", ela disse.

Tudo isso era novidade para Sellers.

Em sua primeira maratona ela puxou demais na largada, e por isso seu plano na segunda-feira era não forçar o ritmo no começo da prova. Mas o pelotão de elite completou a primeira milha (1,6 quilômetro) da prova em 6min40s, um ritmo que lhe pareceu medíocre.

Depois de correr cinco quilômetros, ela começou a sentir calor, e deixou seu agasalho no caminho. As líderes iniciais tinham disparado, e ela não estava prestando atenção ao que acontecia diante dela. Sabia que o grupo que estava à frente era grande, mas não percebeu que algumas das atletas de ponta estavam abandonando a prova por conta das condições adversas. Nos quilômetros finais, ela começou a ultrapassar muita gente, mas não tinha noção do que isso significava.

Depois de cruzar a linha de chegada, ela perguntou aos fiscais em que lugar havia chegado. Eles responderam que chegou em segundo. Sellers quis saber de que divisão eles estavam falando, porque não acreditava que pudesse ter chegado no segundo lugar geral. Eles explicaram que sim, ela tinha chegado em segundo na prova.

"Fiquei meio que em choque", disse Sellers.

ENTREVISTAS

O resto do dia passou em um redemoinho de entrevistas, e ligações ininterruptas para seu telefone, de todo o país. Quando a Associação Atlética de Boston a convidou para o jantar de premiação, isso trouxe o inesperado bônus de uma refeição grátis para ela e o marido.

Ela só conseguiu dormir às 2h, e às 7h da terça-feira já estava em pé, cumprindo uma agenda movimentada de entrevistas, sessões fotográficas, uma corrida de 30 minutos para "relaxar", e um voo vespertino para Tucson, onde ela teria de voltar ao trabalho na manhã da quarta-feira.

(Perguntei se ela pretendia trocar a passagem para um bilhete de primeira classe, para ter mais espaço para as pernas, dada a duração do voo. Não. "Tenho oposição moral à primeira classe", ela disse. "Há muitas outras coisas com que gastar dinheiro, que não passagens de avião".

Agora, Sellers tem decisões importantes a tomar e perguntas a fazer. Que velocidade ela poderia atingir, se não tivesse de trabalhar 40 horas por semana? Será que deveria tentar treinar com um grupo de atletas profissionais? Será que deveria treinar em altitude elevada, como os atletas de elite muitas vezes fazem? Ela planeja continuar trabalhando no hospital, mas vai procurar um equilíbrio melhor entre sono e treinamento.

"Quero correr outra maratona", ela disse. "Em um percurso mais rápido –e com tempo melhor".

Tradução de PAULO ​MIGLIACCI

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