Michael Phelps diz que sistema olímpico negligencia saúde mental

Ele é produtor de um documentário que aborda depressão enfrentada por atletas

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Matthew Futterman
The New York Times

O relacionamento entre o Comitê Olímpico e Paralímpico dos Estados Unidos e o atleta olímpico mais vitorioso do país, Michael Phelps, é complicado há anos.

Quanto mais vencia –e ele venceu muito, conquistando 28 medalhas em cinco Olimpíadas—, mais ele se tornava um modelo para a organização, e merecedor de todo o tratamento especial que ela pudesse dar.

Ou, da perspectiva de Phelps, ele simplesmente se tornou a mais nova e a maior mercadoria, e os promotores olímpicos só se incomodavam com ele como uma máquina incansável de produção de medalhas.

Phelps destila essa dinâmica perto do final do documentário “The Weight of Gold” [o peso do ouro], da HBO Sports, sobre a depressão e outros problemas mentais que os atletas olímpicos enfrentam, e do qual ele serve como narrador. Phelps também é um dos produtores executivos do filme, que teve sua estreia na noite de quarta-feira (29).

“Posso honestamente dizer que, contemplando minha carreira, não acredito que qualquer pessoa realmente se importasse com nos ajudar”, ele afirma, olhando com expressão neutra o entrevistador que não aparece na câmera. “Não acho que qualquer pessoa da organização estivesse preparada para intervir e ver se estávamos bem. Desde que estivéssemos mostrando desempenho, não acredito que qualquer outra coisa importasse."

Nas últimas semanas, ao se prepararem para o lançamento do filme e para as críticas que ele faz a um sistema que por muito tempo priorizou vencer acima de tudo mais, dirigentes olímpicos, atuais e passados, apontaram para todos os privilégios de que Phelps desfrutou durante a sua carreira, entre as quais treinamento e preparação física de primeira linha, acesso a tecnologia de ponta e a uma suíte com dois aposentos no Centro de Treinamento Olímpico americano em Colorado Springs, usada apenas por ele e por ocasionais médicos visitantes caso ele não estivesse presente. Todas as demais pessoas dormiam em quartos simples ou duplos.

Mas esse tratamento preferencial e a reação ao filme, disse Phelps em entrevista esta semana, ilustram a maneira pela qual os dirigentes olímpicos e os treinadores veem os atletas: como ativos valiosos, durante suas breves janelas de glória olímpica, mas depois os deixam basicamente abandonados nos intervalos entre as Olimpíadas. E quando suas carreiras são interrompidas, ou se encerram, o sistema os deixa para trás e abre as portas a um novo astro.

“Em minha opinião, nada do que faço agora importa para eles”, disse Phelps, 35, sobre o Comitê Olímpico e Paralímpico dos Estados Unidos.

Nos últimos meses, o comitê, que declarou que sempre apreciou e desejou a opinião do nadador, criou um grupo de trabalho sobre saúde mental, a fim de ajudar a mudar e expandir um sistema que sua presidente-executiva, Sarah Hirshland, deixou claro que necessita ser atualizado.

A organização leva um total combinado de mil atletas aos Jogos Olímpicos de verão e de inverno, a cada ciclo de quatro anos, mas sua equipe conta com apenas três funcionários na área de saúde mental.

“Existe espaço para que melhoremos e cresçamos”, disse Bahati VanPelt, que se tornou diretor dos serviços a atletas do comitê olímpico americano no ano passado. “Acredito muito em uma estrutura holística e disponível ao longo de todo o ciclo de vida da carreira de um atleta."

Michael Phelps com sua quarta medalha de ouro na Olimpíada do Rio-2016
Michael Phelps com sua quarta medalha de ouro na Olimpíada do Rio-2016 - Gabriel Bouys - 11.ago.16/AFP

O cerne do problema, dizem Phelps e outros atletas, é que, por diversos anos, os dirigentes olímpicos e os atletas de elite trabalharam com duas definições muito diferentes do que constitui apoio ao atleta.

Para o comitê olímpico, apoio ao atleta em geral significa oferecer serviços –instalações de treinamento com tecnologia avançada, treinadores e cientistas de esporte de primeira linha, acesso a psicólogos do esporte, e muitas mercadorias portando a marca do Team USA—, coisas que aparentemente conduziam os atletas a conquistar medalhas.

Para os atletas, o apoio deveria ter evoluído, a esta altura, para algo que inclua cuidados com sua saúde mental de uma forma que vá além dos preparativos mentais que os psicólogos os ajudam a fazer para vencer competições.

“Temos de educar as pessoas para explicar que a saúde mental não é uma fraqueza”, disse Katie Uhlaender, que disputou quatro Olimpíadas de Inverno no “skeleton” e está entre os atletas retratados no filme.

Outros dos retratados incluem Steve Holcomb, medalhista de ouro no bobsled que morreu em 2017, as patinadoras artísticas Sasha Cohen e Gracie Gold, e Jeret Peterson, esquiador da modalidade “aerial” que se suicidou em 2011. “É uma questão de levar as pessoas a encararem essa questão mais do ponto de vista da cura do que do ponto de vista do desempenho”, ela disse.

Uhlaender e outros dizem que existe uma necessidade aguda de acesso fácil dos atletas a terapia, que não envolva passar pelos treinadores ou pelas equipes que respondem pelo alto desempenho esportivo —funcionários que a cada ano avaliam sua forma e resultados de competição e suas participações em equipes nacionais e que podem penalizar um atleta que saibam estar enfrentando problemas de saúde mental e precisando de ajuda.

O comitê olímpico americano tentou avançar nessa direção. Número crescente de atletas tem acesso a aconselhamento por telefone por prazo ilimitado e a seis sessões de terapia pessoal com profissionais licenciados, por meio da ComPsych, uma empresa que fornece assistência a empregados.

O benefício foi estendido a 4.400 atletas neste ano, um número mais de três vezes superior ao de beneficiários antes que a pandemia de coronavírus causasse o adiamento da Olimpíada de Tóquio para 2021.

Os críticos afirmam que a ComPsych é na verdade um instrumento de recursos humanos para empresas, e não uma entidade que preste serviços de saúde mental. VanPelt confirmou que o comitê está negociando com a Talkspace, uma companhia que oferece serviços de saúde online e terapia digital, na qual Phelps é investidor e da qual ele é um dos porta-vozes.

O comitê também está criando um registro de profissionais de saúde mental a quem os atletas poderão consultar sem aprovação de qualquer pessoa do comitê, embora quem pagará por isso e quem terá direito ao benefício sejam questões que ainda não foram decididas.

Nste ano, a ciclista olímpica Kelly Catlin e Pavle Jovanovic, ex-atleta do bobsled olímpico, se suicidaram.

“Não quero ver mais suicídios”, disse Phelps.

O nadador disse ter descoberto o valor da terapia em 2014, nos primeiros meses de sua tentativa de retorno antes da Olimpíada de 2016, quando foi apanhado dirigindo embriagado e acima do limite de velocidade em um túnel em Baltimore.

Ele disse que considera o incidente, e os pensamentos suicidas que teve depois, como a culminação de anos de “repressão” de seus sentimentos de vazio, vulnerabilidade e falta de confiança sobre qualquer outra coisa que não vencer provas olímpicas.

A oportunidade de realizar “The Weight of Gold” surgiu em 2017, quando o diretor do filme, Brett Rapkin, contatou Peter Carlisle, o agente de Phelps, sobre o projeto, em um momento no qual o atleta vinha se pronunciando mais sobre saúde mental.

Rapkin estava trabalhando em um filme sobre Holcomb, o atleta do bobsled que lutava contra a depressão e falou abertamente de seus pensamentos suicidas. A última entrevista de Rapkin com Holcomb aconteceu no segundo trimestre de 2017, dias antes que Holcomb morresse, sozinho no Centro de Treinamento Olímpico de Lake Placid, Nova York, de uma overdose de álcool e soporíferos.

“A metáfora que gosto de usar quando o assunto é o esporte é que costumamos achar que o ponto alto é quando você faz a jogada que vence um jogo, e o ponto baixo é quando você erra e termina eliminado, mas na verdade o ponto baixo real é não querer estar vivo”, disse Rapkin.

Tradução de Paulo Migliacci

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