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SP tem mais de 200 registros de violência contra mulheres por atletas em 3 anos

Medo de retaliação e peso da fama do agressor criam subnotificação de casos

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São Paulo

No dia 1º de setembro de 2020, Joana (nome fictício) procurou o 91º Distrito Policial, na zona oeste de São Paulo, para registrar um boletim de ocorrência. Conforme seu relato, o companheiro, um ex-jogador do Palmeiras, da vitoriosa década de 1990, com o qual foi casada por 26 anos e teve três filhos, havia chegado em casa embriagado, por volta das 23h, e a agredido, além de ter feito ameaças de morte.

Uma das filhas do casal, de 23 anos, tentou intervir, mas também foi repreendida e ameaçada pelo pai, segundo ela. Joana pediu que seu nome fosse preservado, assim como o do seu agora ex-marido, sob a justificativa de não expor os familiares.

Muitas vezes denunciar uma agressão gera o medo de retaliação. Quando o autor da violência é uma figura de destaque, outros temores se juntam a essa preocupação, formando uma barreira ainda maior para a vítima.

“Ele é uma pessoa pública. Enquanto jogava, se eu o prejudicasse, teria um impacto na criação dos meus filhos”, diz Joana. “Meus próprios filhos me incentivaram a denunciá-lo [desta vez].”

Um levantamento feito pela Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo a pedido da Folha, por meio da Lei de Acesso à Informação, mostra que 240 boletins de ocorrências foram produzidos desde 2018, com base em relatos de mulheres que afirmam ter sofrido violência doméstica e crimes sexuais por atletas ou ex-atletas.

Desses, 70 são de ocorrências do ano passado, 87 de 2019 e 82 de 2018 —a soma se completa com um boletim registrado em 2020, mas sobre um fato anterior a esse período. Foram considerados BOs cuja profissão declarada do suposto autor do crime é "jogador de futebol", "atleta profissional", "desportista profissional" ou "esportista".

Do total de crimes investigados (tentados ou consumados), o de ameaça foi o que mais apareceu (35,4% ), seguido de lesão corporal (30,9%) e injúria (16,4%). Também há estupros, homicídios e divulgação de imagens íntimas.

A grande maioria dos episódios relatados aconteceu em locais residenciais, mas 6,7% deles foram em ambientes relacionados ao esporte.

O boletim de ocorrência é uma comunicação dos fatos às autoridades. A partir dele, a Polícia Civil –geralmente as delegacias da mulher (DDM)– abre inquérito para colher provas, submetidas então ao Ministério Público. Este poderá propor uma ação na Justiça ou o arquivamento do caso.

Cada boletim pode ter mais de um tipo de delito, por exemplo, agressão, injúria e ameaça. A Folha contabilizou (conforme orientação da Polícia Militar) cada registro de boletim de ocorrência, independentemente da quantidade de queixas.​

Procurada pela reportagem, a SSP não informou o total de boletins de ocorrências de violência contra a mulher. O site de estatísticas da SSP, que leva em consideração cada crime e não cada registro único, lista 415 mil delitos deste tipo entre 2018 e 2020 —a participação esportiva não chega a 1% desse total.

Também não foi possível contabilizar quantos boletins de ocorrências envolvendo atletas como autores da violência avançaram na tramitação.

Os números reais de violência contra a mulher cometida por atletas ou ex-atletas, no entanto, podem ser ainda muito maiores que os registros, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, por conta de uma estrutura propícia para a subnotificação.

“Quando a gente qualifica o agressor, a profissão é informada pela vítima ou por ele mesmo. Há casos em que o autor não se declara atleta, ou a vítima não sabe [que ele é], ou omite”, diz Jamila Ferrari, coordenadora das delegacias da mulher em São Paulo.

"Esse tipo de violência é também psicológica, existe um estresse pós-traumático. A vítima às vezes demora uma vida para fazer a denúncia ou para entender que o relacionamento, por exemplo, era abusivo", diz Luciana Ferreira Agnelo, da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte (Abrapesp).

"É muito importante a gente poder orientar homens e mulheres sobre isso, é um fator de psicoeducação, um tema muito especial para o esporte", completa.

Elas explicam que há uma série de fatores que podem levar uma mulher a não fazer a denúncia, que são agravados quando a personalidade é pública. Por exemplo, o medo de uma represália por parte da torcida ou da sociedade.

"As pessoas criam um imaginário de certas posições em relação a algumas pessoas", diz a juíza desembargadora aposentada Kenarik Boujikian, que faz um paralelo com o caso do médico Roger Abdelmassih, condenado por ela. "Era uma pessoa com circulação midiática grande, ia sempre para programas de TV, então é compreensível que as vítimas tivessem dificuldade em encarar aquela situação [de denúncia]."

Boujikian aborda ainda uma outra dificuldade: a de a mulher se sentir segura para entrar com um processo que será julgado num Judiciário muitas vezes machista. De acordo com ela, muitas vezes, mesmo após o boletim inicial, a denunciante acaba não se empenhando para fazer a investigação prosseguir, ou juízes relativizam os fatos.

Tais estruturas explicam não só a dificuldade em denunciar, que pode causar grande subnotificação, mas também o receio que as vítimas abordadas pela reportagem tiveram de contar suas histórias.

Muitas recusaram conversar sobre o assunto, mesmo sob a condição de anonimato. As que falaram, pediram que a maior parte das informações sobre elas e seus agressores fossem preservadas, com medo de represálias.

Em São José do Rio Preto, a vendedora e garota de programa Jéssica (nome fictício), 29, combinou um encontro por mensagens de WhatsApp com um jogador de 18 anos, de passagem pelas categorias de base do XV de Piracicaba. O clube afirmou à reportagem que o contrato dele havia sido encerrado em abril de 2018, um mês antes do episódio. Atualmente, ele está sem clube.

Quando Jéssica chegou próximo ao suposto apartamento do jovem, por volta das 19h30, ele a aguardava na esquina. O jogador, então, teria enforcado e arrastado a vítima para um ginásio esportivo.

Segundo o relato no boletim de ocorrência, ele mostrou uma arma e abusou sexualmente da mulher em uma área arborizada nas dependências de um estádio.

Após ter consumado o ato, o jogador teria afirmado que a agressão era parte de um fetiche e que, antes de pagar pelo programa, Jéssica deveria excluir seu número de celular. Após ela se recusar, ele a teria agredido com um chute e ido embora.

À Folha, Jéssica conta que só teve certeza de que o agressor era jogador de futebol quando verificou um perfil do suspeito em uma rede social. Depois do ocorrido, ela mudou de cidade e não teve qualquer notícia do caso.

Pesquisa realizada pelo Datafolha, a pedido do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), indica que 52% das mulheres que sofreram alguma agressão no último ano não a denunciaram. O levantamento foi feito em 2019 e ouviu 2.084 pessoas em 130 municípios.

No começo da quarentena, em março de 2020, a Polícia Civil de SP passou a permitir o registro de casos de violência doméstica pela delegacia eletrônica –antes feitos apenas presencialmente. Nos três primeiros meses do serviço, de abril a junho, foram computados 5.559 boletins (19% dos 29.117 registros).

Mariana (nome fictício) prefere omitir sua idade e cidade. Ela confirmou à reportagem a história contida no boletim de ocorrência, mas reiterou que foi um caso isolado e que a situação se resolveu.

Contou que durante a pandemia a sua relação com o marido, um jogador de futebol, piorou. Numa noite, grávida, ela sofreu agressões físicas e verbais e decidiu prestar queixa. Eles continuam casados.

Na história recente do futebol brasileiro, acusações de violência tiveram grande repercussão no noticiário esportivo.

O atacante Robinho, que atuou pelo Santos e pela seleção brasileira, recentemente teve confirmada pela Corte de Apelação de Milão sua condenação a 9 anos de prisão estupro coletivo. A defesa do atacante tem agora 45 dias para recorrer na Justiça italiana.

Bruno, ex-goleiro do Flamengo, foi condenado e preso por assassinar e ocultar o cadáver de Eliza Samudio. Em liberdade condicional, ele já chegou a voltar ao futebol profissional.

Menos de um ano antes de ser assassinada, grávida, Eliza chegou a denunciar Bruno por agressão e cárcere privado e por fazê-la ingerir substâncias abortivas. Ela pediu proteção pela Lei Maria da Penha em 2009, mas uma juíza negou, alegando que a lei serviria para uma "mulher na relação afetiva, e não na relação puramente de caráter eventual e sexual". A decisão foi criticada, à época, até pelo governo federal, como mostra da estrutura machista do Judiciário.

"Há um preconceito e machismo estrutural, porque o agressor, o atleta, acha que tem salvo-conduto para fazer o que quiser, como se todo mundo fosse defendê-lo. No caso do goleiro Bruno, além do que ele fez à Eliza [Samudio], ele [acha que] pode fazer o que quiser. Não reconhecer o filho, querer que ela fizesse um aborto", diz a delegada Ferrari.

O esporte também tem visto cada vez mais denúncias de assédio e abusos nos últimos anos, inclusive nas categorias de base. Nos bastidores, pessoas ligadas a diferentes modalidades relatam uma estrutura interna de silenciamento e de enorme pressão psicológica.

Ao mesmo tempo, entendem que há um padrão no comportamento do esportista fora deste ambiente, no qual ele se coloca como dono de poder nas suas relações interpessoais.

Para Luciana Angelo, o atleta, acostumado a transitar em um universo hierárquico e rígido como o esportivo, muitas vezes reproduz essas estruturas dentro de casa.

"Como a vítima não reconhece que está vivendo um comportamento abusivo? Quando eu não me reconheço como tendo autoestima. Se tenho autoestima rebaixada, não crio e não vejo como sou eficaz, capaz de ir contrariamente àquela figura que publicamente é valorizada, reconhecida", afirma.

Kenarik Boujikian coloca ainda que a fama é muitas vezes usada pela defesa do acusado como prova de inocência ou de tentativa de diminuir sua pena. "Uma coisa que encorajou essas mulheres [a ir contra o Roger Abdelmassih] foi o fato de saberem que outras passaram pela mesma situação", diz.

"Este tipo de relato no futebol é comum. Porque falamos de uma modalidade que é paixão nacional, mobiliza uma quantidade de relações políticas e financeiras inumeráveis e que, sim, podem ter consequência em função do entendimento do que isso representa na vida daquela vítima", conclui a psicóloga Luciana Ferreira Agnelo.

Bola de futebol
Bola de futebol - Eduardo Knapp - 2.dez.2015/Folhapress
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