Influência da Premier League se estende a disputas de título em outros países

Riqueza desproporcional dos clubes da Inglaterra permite que seus proprietários exerçam papel direto na decisão em outras ligas

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Rory Smith
The New York Times

A primeira reunião mostrou a Alex Muzio tudo que ele precisava saber. Não muito depois que ele e seu sócio de negócios, o magnata dos jogos de azar Tony Bloom, adquiriram o Royale Union Saint-Gilloise, um clube de futebol belga, Muzio se reuniu com o treinador do time para uma conversa. Ele queria discutir potenciais contratações.

Muzio nunca foi jogador de futebol. Nunca foi olheiro. Passou a juventude trabalhando para a consultoria Starlizard, de Bloom, uma empresa que muita gente encara como a principal companhia de apostas do Reino Unido.

O modelo de negócios da Starlizard é usar dados para encontrar vantagens nas apostas. O sistema conta com informações vindas de dezenas de milhares de apostadores em todo o mundo. Os algoritmos criados sob medida que ele usa foram projetados para vasculhar esses dados e distinguir oportunidades, primeiro, e em seguida talentos. O plano da Starlizard como proprietária de clubes era fazer a mesma coisa.

Jogador do Royale Union Saint-Gilloise (de amarelo) durante partida - Royale Union Saint-Gilloise no facebook

Bloom já era dono de um clube na Inglaterra: o time pelo qual ele sempre torceu, o Brighton, transformado em parte pelo dinheiro e pelos métodos de Bloom. Mas ele e Muzio queriam ver o que mais sua "propriedade intelectual" seria capaz de fazer. Muzio disse que o que queria "era conquistar um título".

Em maio de 2018, quando Bloom concluiu a aquisição do Union, Muzio, estava ansioso para começar. O clube, que celebrou um título pela última vez nos anos entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, estava naquele momento afundado na segunda divisão do futebol belga. Sua equipe de funcionários era formada em boa parte por voluntários. O centro de treinamento, no subúrbio de Bruxelas, não tinha chuveiro nos vestiários. Muzio não estava certo nem de que o centro tivesse banheiros.

Mas sua intenção não era a de que as coisas continuassem assim. O primeiro passo seria conseguir o acesso à primeira divisão belga em três anos e, para isso, Muzio sabia que o time precisava ser reformulado. Ele apresentou ao experiente treinador do Union, Marc Grosjean, uma lista de potenciais contratações, todas selecionadas e avaliadas com base nos dados da Starlizard.

Grosjean não se se impressionou. Ele usou um palavrão para descrever as sugestões de Muzio, e em seguida apresentou suas alternativas. "Ele me disse que preferiria contratar um grupo de jogadores belgas, jogadores que conhecia", disse Muzio. Não demorou muito para que o sistema da Starlizard avaliasse as sugestões do treinador. Antes do final do mês, Grosjean estava fora do Union, e sua saída, abrupta mas decidida de comum acordo, foi descrita como "um desacordo quanto ao desenvolvimento esportivo do clube".

"Há maneiras de fazer as coisas que nos interessam", disse Muzio. E qualquer resistência só serviria para desacelerar o processo.

Três anos mais tarde, as ideias dele estavam comprovadas. O Union atingiu sua meta de acesso à primeira divisão na metade deste ano. E agora, mais ou menos na metade da atual temporada, o clube ocupa a primeira posição da Jupiter Pro League, com seis pontos de vantagem sobre o Club Brugge. Tendo em vista a estrutura do futebol belga, cuja temporada regular é seguida por playoffs para decidir o campeão, a possibilidade de um título para o Union, seu primeiro desde 1935, continua remota. Mas é uma possibilidade, ainda assim.

E isso, claro, não teria sido possível sem a chegada de Muzio, que serve como presidente do Union, e de Bloom, embora este último não tenha qualquer envolvimento com a administração do clube no dia a dia.

Não é completamente exato descrever a presença deles no Union como um golpe de sorte. O time foi adquirido porque cumpriu os critérios rigorosos estabelecidos no início da busca: era o tipo certo de clube, ao preço certo, e localizado no lugar certo. A região metropolitana de Bruxelas, onde fica a sede do Union desde 1897, abriga mais de um milhão de moradores e só um outro grande clube, o Anderlecht, rival mais tradicional do Union. A compra do clube não aconteceu por acaso.

Muzio, Bloom e a Starlizard estudaram clubes em uma série de ligas. Outros poderiam ter tido prioridades diferentes, requisitos diferentes, ideias diferentes. Mas o Union, especificamente, se enquadrou com exatidão àquilo que eles procuravam, e assim foi transformado pela chegada deles, um clube até ali reduzido a uma sombra de si mesmo mas que terminou revitalizado.

Essa é uma versão de uma história que vem se repetindo em muitas partes da Europa com regularidade cada vez maior nos últimos anos: times afundados na mediocridade ou que enfrentavam dificuldades financeiras e terminaram resgatados, em alguns casos do dia para a noite, por uma força externa. Na superfície, esses clubes todos têm muito pouco em comum. Mas por sob a superfície existe um traço de união entre eles, e esse traço conduz à Inglaterra.

Que o futebol europeu vem tendo sua forma ditada pela Premier League, nos últimos 10 anos ou pouco mais, é indubitável. A riqueza da primeira divisão inglesa exerce forte atração gravitacional sobre o resto do continente. Os clubes ingleses servem como o mercado mais confiável para jogadores, empurram para cima os preços no mercado de transferências e causam alta nos salários. Jogadores são adquiridos em toda a Europa com o objetivo de serem transferidos mais tarde para a Inglaterra, e muitas vezes as compras são bancadas por dinheiro que surge como consequência dos contratos televisivos da Premier League, aparentemente imunes à pandemia.

Nos últimos anos, porém, a natureza desse impacto mudou. Ele deixou de acontecer a uma escala de distância; em lugar disso, os clubes ingleses – ou melhor, os grupos internacionais que os controlam – passaram a investir diretamente em equipes internacionais, o que lhes propicia influência imediata sobre campeonatos de toda a Europa e de todo o planeta.

As razões para tanto variam. Dois dos rivais do Union na Jupiter Pro Legue têm proprietários com conexões inglesas: o O.H. Leuven é controlado pela King Power, a empresa tailandesa que é dona do Leicester City, e o Ostend é parte de um grupo de clubes pertencente ao Pacific Media Group, entre os quais o Nancy, da França; o F.C. Den Bosch, da Holanda; e um time inglês de segunda divisão, o Barnsley.

Embora o Leuven tenha servido em dados momentos como pouco mais que um time de desenvolvimento – um lugar a para onde jogadores jovens são enviados com objetivo de ganharem experiência -, o Pacific Media Group acredita que sua abordagem ajude a melhorar o desempenho e reduza custos em toda sua rede de times. "Não precisamos ter equipes de funcionários completas em todos os mercados", disse Paul Conway, o fundador do grupo, ao podcast Unofficial Partner.

O Ostend, o Nancy, o Barnsley e os demais clubes do grupo compartilham não só de pessoal como de conhecimento. "Dispomos de uma base de conhecimento superior à da maioria das equipes", disse Conway sobre os departamentos de recrutamento de seus clubes. Isso ajuda a prevenir "vazamentos", nas palavras dele. "Você gasta rios de dinheiro em um jogador e então, no final do contrato, ele vai embora", disse. "Por termos um estilo uniforme de jogo dentro do grupo, podemos manter esses jogadores por toda a vida." Caso um clube não precise mais de um determinado jogador, em outras palavras, uma vaga pode ser encontrada para ele em outra equipe do grupo.

Uma abordagem parecida ajudou o Estoril, por muito tempo um simples figurante na primeira divisão portuguesa, a conquistar vaga na Europa League, depois de passar para o controle de um grupo de clubes ligados a David Blitzer, executivo do grupo financeiro Blackstone que é parte do consórcio que controla o Crystal Palace, da Premier League inglesa.

O campeão dinamarquês Midtjylland tem entre seus proprietários Matthew Benham, outro magnata das apostas e ex-colega de Bloom, que é um dos proprietários do Brentford, um clube promovido recentemente à Premier League com o qual a equipe dinamarquesa compartilha de filosofias de jogo e do uso disciplinado de sistemas de dados.

E há, não podemos nos esquecer, os clubes que formam o City Football Group, uma rede centrada no Manchester City. O histórico do grupo não inclui só sucessos. Embora tenha se saído bem na Major League Soccer, dos EUA, e na Austrália –ligas cujos atuais campões são, respectivamente, o New York City FC e o Melbourne City– , suas empreitadas na Europa parecem mais complicadas.

O Lommel, clube do grupo na Bélgica, continua afundado na parte baixa da tabela da segunda divisão apesar de contar com orçamento mais alto que o de muitos de seus pares, e o Girona, seu clube na Espanha, foi rebaixado da La Liga em 2019 e ainda não voltou. O Troyes, o clube francês adquirido pelo grupo no ano passado, conquistou acesso à Ligue 1 em sua primeira tentativa, mas por enquanto está lutando contra o rebaixamento.

O relacionamento entre o Union e o Brighton é menos hierárquico. A profundidade do conhecimento da Starlizard sobre o jogo significa que seus métodos estão além do alcance da maioria de seus rivais – "é impossível para outros clubes usá-los", disse Muzio–, mas ele rejeitou a ideia de que o Union seja apenas um celeiro de jogadores para alimentar o time irmão.

"Somos muito independentes", ele disse, antes de se referir a Boom. "Tony é o proprietário majoritário, mas ele não tem qualquer envolvimento com o Union. Não interfere. Temos a liberdade de fazer as coisas da maneira que quisermos".

Boa parte da metodologia do Brighton e do Union é a mesma, inevitavelmente, ele disse, porque tem por base a maneira pela qual a Starlizard sempre trabalhou, mas os clubes não compartilham de qualquer outra coisa exceto isso. Até agora, foi o bastante para restaurar – pelo menos por enquanto - a posição do Union no topo do futebol belga, com base em conhecimentos especializados desenvolvidos e aperfeiçoados na Inglaterra.

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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