Esporte mais popular do Qatar, críquete vive marginal no país da Copa

Modalidade é muito praticada por migrantes, maioria em cidades como Doha

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John McManus
Doha | The New York Times

​Se você precisa comprar um bastão de críquete em Doha, todo o mundo diz a mesma coisa: "Ligue para o Ali".

Pequenino e polido, com uma barba espessa e cabelo desgrenhado, Ali trabalha no departamento de contabilidade de uma agência de turismo. Mas sua verdadeira paixão é projetar e vender equipamento para críquete, em um quartinho de seu apartamento na periferia de Doha.

Bastões de críquete não costumam ser vendidos nas lojas de produtos esportivos do Qatar. E isso ocorre porque os qatarianos não jogam críquete. Mas as pessoas do sul da Ásia o fazem, e há 1,5 milhão delas vivendo e trabalhando no pequeno país do Golfo Pérsico.

Ali, que pediu para ser identificado penas pelo prenome porque não tem licença para vender produtos em casa, disse que seus clientes variam de trabalhadores mal pagos a executivos dos maiores hotéis do Qatar. A vasta gama de ocupações serve como lembrete sobre as muitas maneiras pelas quais indianos, paquistaneses, bengalis, cidadãos do Sri Lanka e nepaleses são indispensáveis para o funcionamento do Estado e da economia no Qatar, uma nação de cerca de 2,7 milhões de habitantes, das quais apenas 300 mil são qatarianos de origem.

Praticante de críquete no Qatar, onde esporte é muito popular
Críquete é popular entre migrantes que vivem no Qatar - Iman Al-Dabbagh/The New York Times

A despeito de sua popularidade entre a maioria da população do Qatar, porém, o críquete ocupa uma posição marginal no país. Embora o Qatar tenha injetado bilhões de dólares nos preparativos para a Copa do Mundo de futebol de 2022, que sediará em um reluzente conjunto de novos estádios, em novembro e dezembro, o críquete continua a ser apenas uma nota de pé de página, para os poucos qatarianos que se interessam por ele. Por mais de uma década, disse Ali, o foco vem sendo "apenas a Fifa e o futebol".

A negligência quanto ao esporte favorito do sul da Ásia indica uma ambivalência maior no Qatar quanto aos seus moradores vindos do subcontinente asiático. Embora a mão de obra deles seja essencial, o imenso número de migrantes –há pelo menos cinco vezes mais deles do que cidadãos naturais do país– significa que raramente são abraçados como parte da cultura da nação.

"A posição legal deles é precária", disse Neha Vora, antropóloga do Lafayette College, em Easton, no estado norte-americano da Pensilvânia. "Eles são colocados em uma situação na qual tecnicamente a expectativa é de que não se assentem no país."

Nos últimos 15 anos, o esporte se tornou peça central nos esforços de branding internacional do Qatar. Além de seus preparativos para a Copa do Mundo, Doha sediou campeonatos mundiais de atletismo, torneios de tênis e corridas de Fórmula 1. Dinheiro qatariano também controla o clube de futebol francês Paris Saint-Germain e ajuda a bancar a economia do futebol europeu por meio de contratos televisivos com a beIN Sports, uma empresa controlada pelo Qatar, e de patrocínios como os da Qatar Airways.

O críquete, em contraste, precisa se contentar com pouco. Nas manhãs de sexta-feira –o começo do final de semana em Doha–, milhares de praticantes do esporte acordam antes de o dia nascer e de o calor se tornar insuportável e se encaminham aos espaços abertos da cidade. Na ausência do tipo de gramado luxuriante que está sendo preparado nos estádios da Copa do Mundo, eles jogam em espaços urbanos desocupados e estacionamentos vazios, em campos demarcados por pedras, chinelos quebrados e garrafas de água vazias.

Praiticantes de críquete no Qatar, onde esporte é muito popular
Críquete é habitualmente praticado em terrenos improvisados - Iman Al-Dabbagh/The New York Times

A forma de críquete mais comum no Qatar é jogada com bolas de tênis –sejam bolas oficiais, cobertas de fita isolante para amortecer o rebote, ou, mais frequentemente, versões especiais contendo pesos adicionais, importadas da Índia. Diferentemente da versão oficial do críquete, que requer uma bola sólida feita de cortiça, tecido e couro –além de um campo bem cuidado e equipamento de proteção–, o críquete jogado com bolas de tênis requer apenas algumas tábuas, um bastão e um espaço aberto que pode ter apenas 20 metros.

Porque os bastões tradicionais de críquete são pesados e desconfortáveis demais para usar com as bolas de tênis, mais leves, Ali detectou uma oportunidade, no entusiasmo crescente pelo críquete com bolas de tênis, e começou a importar bastões mais leves da Índia, em 2015. Mas a qualidade não o satisfazia. Por isso, ele procurou um fabricante no Paquistão e lhe enviou um protótipo de bastão projetado especialmente para rebater as bolas de tênis que são comumente usadas para praticar o esporte no Golfo Pérsico.

Depois de quase dois anos de experiências, ele chegou a uma fórmula satisfatória. "Alhamdulillah [Deus seja louvado], ele é muito famoso", disse Ali, mostrando um dos modelos de bastão e acariciando-o como um criador de gatos faria com um animal de alto pedigree. Ele decidiu dar à sua criação o nome de Long Sixer, que é o nome da jogada de pontuação mais alta que pode ser realizada no críquete.

Muitos dos jogos no Qatar com bolas de tênis são coordenados por ligas organizadas por expatriados do sul da Ásia. Uma das maiores, a Qatar Expat Cricket Community, tem 250 times que jogam a cada sexta-feira.

Mas ninguém joga críquete profissional no Qatar. Os integrantes da seleção nacional de críquete do Qatar –quase todos migrantes, do Paquistão, Índia e Sri Lanka– têm empregos normais. "Não é como no futebol; futebolistas têm bons salários", disse Faisa Khan, rebatedor que jogou pela seleção qatariana até deixar o esporte, em 2021. Todos os jogadores da seleção do Qatar, ele disse, "trabalham 12 horas por dia".

Praticantes de críquete no Qatar, onde esporte é muito popular
Jogadores do QCF (Qatar Cricket Friends) celebra título da liga local, obtido em triunfo sobre o Golden Knight - Iman Al-Dabbagh/The New York Times

Os praticantes do críquete de vez em quando enfrentam problemas com as notórias leis trabalhistas do Qatar. As regras, que no passado davam a um empregador o poder de impedir seu pessoal de mudar de emprego ou até de deixar o país sem autorização, foram parcialmente reformadas em 2020. Mas continuam a ser criticadas por conceder poder demais aos empregadores e pela falta de fiscalização.

A empresa para a qual Khan trabalha, por exemplo, o impedia de viajar ao exterior para defender a seleção do Qatar. "Eles não me deixavam ir, e perdi duas excursões com a seleção", ele disse. "Fiquei muito triste e decepcionado."

Alguns acreditam que os recursos e o apoio limitado ao críquete estejam relacionados à dificuldade de atrair os moradores locais ao esporte. "O críquete tem partidas muito longas", disse Gul Khan, diretor de críquete nacional na Qatar Cricket Association (QCA), a federação do esporte no país. "Ninguém está interessado em sair de casa para assistir."

Outros, no entanto, insinuam que é a federação que deve ser responsabilizada pelo estado lamentável do esporte. Acusam seus dirigentes de se concentrar indevidamente em promover torneios internacionais sempre deficitários em lugar de desenvolver e expandir o esporte dentro do país.

Em sua abordagem quanto ao críquete, Qatar está atrás de seus vizinhos no Golfo Pérsico. No Omã, por exemplo, o desenvolvimento é encorajado por um requisito de que os clubes das divisões inferiores incluam pelo menos um jogador nascido no país em cada time.

Os Emirados Árabes Unidos são a sede do Conselho Internacional do Críquete –a federação mundial do esporte– e em 2021 sediaram tanto a Copa do Mundo T20 como a Indian Premier League, dois dos torneios mais importantes do críquete mundial. Não surpreende, portanto, que o Qatar esteja atrás do Omã e dos Emirados Árabes nos rankings mundiais do críquete.

Mas existem sinais de que isso possa estar começando a mudar. "Quero melhorar o críquete aqui no Qatar", disse o xeque Abdulaziz bin Saoud al-Thani, que se tornou presidente da QCA em dezembro. Ele afirmou que planejava estabelecer uma academia nacional de críquete, criar uma liga reconhecida internacionalmente e colocar o Qatar entre os oito melhores times de críquete masculino do planeta até 2025.

Crianças praticam críquete no Qatar, onde esporte é muito popular
Crianças praticam críquete em academia de Doha - Iman Al-Dabbagh/The New York Times

Esses objetivos não são necessariamente fantasiosos, em um país dotado dos recursos que o Qatar tem. Uma grande injeção de capital e conhecimento especializado transformou a seleção de futebol do Qatar de um peixe pequeno nos torneios regionais em campeã asiática, em pouco mais de uma década. Mas muita gente continua cética. "Eles só falam", disse Khan, o rebatedor aposentado.

Mesmo sem apoio oficial, o críquete é e continuará a ser a espinha dorsal na vida de milhares de migrantes do sul da Ásia que vivem no Qatar, longe de seus lares e famílias. Ali disse que o esporte funciona como uma rede social, um recurso de busca de empregos e uma forma de descarregar o estresse do trabalho.

"Antes, essas pessoas não se conheciam", ele disse. "Mas depois do críquete, elas se aproximaram. Formaram famílias, amizades. Começaram novos negócios."

Tradução de Paulo Migliacci

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