Violência cresce no futebol, e pesquisadores apontam velha causa: impunidade

Brasil vê escalada de casos enquanto infratores desfrutam sensação de liberdade

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São Paulo

Um confronto entre torcedores são-paulinos e corintianos, no sábado (5), na estação Primavera-Interlagos da linha 9-Esmeralda, provocou a queda de um bebê de oito meses que estava nos braços de sua mãe nos trilhos do trem. A criança teve uma fratura na cabeça e está internada em observação.

Cinco pessoas envolvidas na briga foram ouvidas no 101º DP e liberadas. Ninguém foi preso.

Em Belo Horizonte, ao menos 50 torcedores de Atlético-MG e Cruzeiro participaram de cenas de guerra no bairro Boa Vista, no domingo (6). Eles se atacaram com pedaços de pau, pedras e armas de fogo. Um cruzeirense foi baleado e morreu.

Apenas dois foram presos, mas o autor do disparo, apesar de identificado pela polícia, está foragido.

Homem ferido é carregado após briga em Belo Horizonte - Reprodução/Redes sociais

O Brasil tem assistido neste ano a uma escalada de casos de violência relacionados ao futebol. Pesquisadores ouvidos pela Folha afirmam que vários fatores contribuem para a frequência dos episódios, mas apontam a impunidade como um dos principais elementos para esse cenário.

Consultor de segurança e ex-secretário nacional de Segurança Pública, José Vicente da Silva defende que o problema está diretamente ligado à sensação de falta de penalização entre os infratores.

"O Estatuto do Torcedor é severo em relação às medidas de controle. Mas a impressão que a gente tem é que ele é pouco aplicado", afirma.​ "Quem está infringindo a lei tem que ser alcançado por ela. Se não dá para pegar 20, pega dois. Esses dois vão servir de exemplo para os outros 18", acrescenta.

Como contraponto, Silva destaca o comportamento do governo britânico diante dos inúmeros casos de violência registrados sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, com os "hooligans". "Na Inglaterra, a Justiça chegou a prender 3.000 torcedores em um ano. Aqui, você não vê punir nem 30 no Brasil inteiro", compara.

Em 2013, reportagem produzida por um enviado especial da Folha a Londres mostrou que, nos anos 2000, cerca de 46 mil torcedores foram presos no período de dez anos a partir da criação da lei que endureceu o controle dos "hooligans".

As principais condutas que levaram a prisões foram: desordem pública, abuso de álcool, comportamento violento e invasão de gramado.

De acordo com o advogado Rodrigo Marrubia, especialista em direito esportivo, o Estatuto do Torcedor já prevê punições para casos semelhantes no Brasil. "O que difere a Europa do Brasil e, consequentemente, o resultado experimentado, é a efetiva aplicação da norma", afirma o especialista do escritório Carlezzo Advogados.

Ele defende que o cumprimento rigoroso das leis é mais eficaz do que medidas como a adoção de torcida única, como ocorre em São Paulo, por exemplo, desde 2016.

"Há que se observar que a Europa faz excelente uso da tecnologia para fiscalizar a aplicação das leis em estádio, o que certamente seria o grande exemplo a ser importado pelo Brasil para reduzir a violência", diz Marrubia.

Para o delegado da Drade (Delegacia de Repressão aos Delitos do Esporte), departamento da Polícia Civil de São Paulo, Cesar Antônio Saad, a adoção de torcida única reduziu a violência nos estádios, porém transferiu os confrontos para a periferia e outros locais públicos, como as estações de trens e metrô.

"Por conta da torcida única, eles acabam armando emboscadas em diversos locais. E eles, quase sempre, estão sem identificação. Tudo isso para tentar burlar a investigação", diz Saad.

Além do monitoramento por câmeras em diversos pontos do estado e nos estádios, ele afirma que está em fase de estudos em São Paulo o cadastramento dos torcedores por biometria. "Isso vai facilitar muito para nós", afirma.

Levantamento anual realizado pelo Centro de Pesquisa de Mestrado da Universo, coordenado por Mauricio Murad, doutor em sociologia do esporte, mostra que, em 11 anos (2009 a 2019), ao menos 157 mortes foram registradas envolvendo brigas de torcidas de clubes que disputaram no período as três principais divisões do Campeonato Brasileiro.

Murad afirma, em artigo publicado com outros três pesquisadores, que "a violência no futebol brasileiro cresceu com o passar dos anos devido ao aprofundamento dos contextos sociais violentos, a impunidade e o descaso das autoridades no país".

O professor Bernardo Buarque de Hollanda, pesquisador de Ciências Sociais na FGV, vê ainda a pandemia de Covid-19 como um novo componente que acabou potencializando a violência das torcidas.

"Durante o período em que as torcidas estiveram longe dos estádios, eles conseguiram atrair uma pauta positiva, com as ações sociais que muitas organizadas fizeram", cita. "Ironicamente, no momento em que elas voltam a poder ir aos estádios, há um efeito como se fosse uma mola que estava reprimida e há esse ímpeto de violência", finaliza.

Alex Minduín, fundador da Anatorg (Associação Nacional das Torcidas Organizadas do Brasil), reforça o papel do Estado para o aumento da violência. "A sociedade está violenta, e esses jovens são reflexos da pressão que essa sociedade está atravessando neste momento. Isso envolve falta de investimentos na área da educação, desemprego, falta de acesso às questões básicas do dia a dia, falta de lazer, entretenimento e cultura", diz.

Para ele, "quando falta tudo isso, o espaço para questões negativas está aberto".

O advogado especialista em direito do torcedor Renan Bohus identifica que há um estigma sobre os torcedores. E pondera que a violência vista entre as torcidas é observada em diversas outras vertentes.

"Grande parte dessas pessoas que brigam no futebol são as mesmas pessoas que brigam na sociedade. É o cara que agride mulher, que agride o outro motorista de trânsito, que agride aquela pessoa que tem uma opinião política diversa da sua. Então, nós temos que entender que isso é um campo social."

Para Flávio de Campos, professor do departamento de história da USP (Universidade de São Paulo), existem dois tipos de fatores que ajudam a entender a violência no futebol: os particulares, ligados às rivalidades, e os gerais, que conectam os temas ligados à sociedade. "Costumamos ver o futebol como algo separado da sociedade, e não é", diz.

"O futebol é uma janela onde os indivíduos expressam comportamentos coletivos. E nós estamos em um momento de ascensão da extrema-direita no mundo, e é uma extrema-direita racista, xenófoba, machista, sexista e homofóbica. E os efeitos disso aparecem no futebol", afirma Campos, que coordena o laboratório Ludens (Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas).

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