Restrição a trans na natação alimenta debate que opõe inclusão e igualdade de condições

Elegibilidade de atletas transgênero e intersexuais está entre questões mais complicadas do esporte

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Jeré Longman
The New York Times

O objetivo principal dos esportes de elite deve ser a justiça competitiva? Ou manter a integridade significa que a inclusão é tão importante quanto a igualdade de condições?

A questão, que agitou as piscinas de todos os lugares com o sucesso de Lia Thomas, a nadadora transgênero da Universidade da Pensilvânia, veio à tona novamente no mês passado. A Fina, órgão que rege o mundo da natação, basicamente proibiu as mulheres transgênero nos mais altos níveis da competição internacional feminina.

A proposta da Fina é criar a chamada categoria aberta de competição, para "proteger a justiça competitiva". Mas uma categoria separada é "isolante, humilhante e tem o potencial de transformar competidores transgênero e não-binários em um espetáculo no cenário internacional", disse Anne Lieberman, diretora de políticas e programas da Athlete Ally, que busca acabar com a transfobia e a homofobia nos esportes.

Lia Thomas venceu campeonato universitário nos EUA - Brett Davis - 17.mar.22/USA Today Sports

A tentativa de equilibrar inclusão e justiça, especialmente no que diz respeito à elegibilidade de atletas transgênero e intersexuais (competidores com o padrão masculino típico de cromossomos X e Y) está entre as questões mais complicadas e divisivas do esporte.

Há argumentos fundamentados em ambos os lados. Passar pela puberdade como homem oferece vantagens físicas que persistem mesmo após a supressão dos níveis de testosterona, como ombros mais largos, mãos maiores, torsos mais longos, músculos mais densos e maior capacidade cardíaca e pulmonar.

Em janeiro, as federações internacionais e europeias de medicina esportiva emitiram uma declaração conjunta que dizia, em parte, que altas concentrações de testosterona "conferem uma vantagem básica aos atletas em certos esportes" e que, para defender "a integridade e a justiça no esporte", essas vantagens "devem ser reconhecidas e mitigadas".

No entanto, tem havido relativamente pouca pesquisa científica envolvendo atletas de elite transgênero. E os estudos não quantificaram o impacto preciso da testosterona no desempenho esportivo. O órgão regulador do atletismo, que instituiu regulamentos rigorosos sobre os níveis de testosterona permitidos, corrigiu no ano passado sua própria pesquisa. Ele reconheceu que não poderia confirmar uma relação causal entre altos níveis de testosterona e vantagens de desempenho para atletas femininas de elite.

A Fina se fez vulnerável aos críticos, que a acusam de ter agido de forma precipitada e imprudente, retaliando contra Thomas e tentando criar uma solução para um problema que não existe. A Human Rights Campaign, organização de direitos civis LGBTQIA+, culpou o órgão regulador da natação por "ceder à avalanche de ataques preconceituosos e mal informados dirigidos a uma nadadora transgênero em particular".

Apenas uma atleta transgênero conhecida ganhou uma medalha olímpica em uma competição feminina, a jogadora de futebol canadense Quinn, que foi designada mulher ao nascer e se identifica como não-binária. E apenas duas atletas abertamente transgênero parecem ter conquistado títulos da NCAA –Thomas e CeCe Telfer, que venceu a corrida de 400 metros com barreiras da Divisão II da Universidade Franklin Pierce, em 2019.

Mesmo vencendo, Lia Thomas não teve um desempenho arrasador no campeonato da NCAA em março. Seu tempo vitorioso na prova de 500 metros metros nado livre foi nove segundos acima do recorde universitário, estabelecido por Katie Ledecky para a Universidade Stanford em 2017. Thomas terminou em quinto lugar nos 200 metros livre e em último na final dos 100 metros livre.

"É muito lamentável que a Fina tenha tomado essa decisão", disse Joanna Harper, médica que pesquisou e escreveu extensamente sobre atletas transgênero. "As mulheres trans não estão dominando o esporte feminino, nem vão dominar."

Alguma outra federação internacional de esporte seguirá o exemplo da natação? Alguns preveem que a do atletismo possa ser a próxima, atraída pela solução da Fina para a espinhosa questão de quais níveis de testosterona devem ser permitidos. A regra da natação proíbe mulheres transgênero de competir, a menos que iniciem tratamentos médicos para suprimir a produção de testosterona antes de passar por uma das fases iniciais da puberdade, ou aos 12 anos, o que ocorrer mais tarde. Há muito debate na comunidade médica sobre essa intervenção precoce.

A CAS (Corte Arbitral do Esporte, na sigla em inglês) –espécie de Supremo Tribunal para esportes internacionais– anularia a decisão da Fina, se contestada? A história sugere o contrário.

A campeã sul-africana Caster Semenya perdeu sua tentativa perante o tribunal de derrubar as regras de testosterona do atletismo, encerrando efetivamente sua carreira olímpica. A CAS decidiu em 2019 que a política do atletismo era "discriminatória", mas também "necessária, razoável e proporcional" para garantir um jogo justo nos eventos femininos.

Dois árbitros seniores da CAS, incluindo o árbitro principal no caso de Semenya, estavam entre os especialistas jurídicos e de direitos humanos da Fina e estavam convencidos de que a política da federação atendeu ao padrão "necessário e proporcional", disse Doriane Lambelet Coleman, professora de direito na Universidade Duke especializada em sexo e gênero. Ela ajudou a redigir a política da Fina.

Caster Semenya foi impedida de disputar os Jogos de Tóquio - Fabien Dubessay - 9.jun.22/AFP

Em novembro, o COI (Comitê Olímpico Internacional) advertiu contra presumir, sem provas, que os atletas tenham uma vantagem competitiva injusta "devido a suas variações de sexo, aparência física e/ou status de transgênero". Mas isso era apenas um princípio orientador. O COI cedeu a determinação das regras de elegibilidade às federações esportivas internacionais.

Uma situação complexa pode ficar ainda mais confusa. Digamos, por exemplo, que a natação dos Estados Unidos ignore a política da Fina quando as Olimpíadas de Paris chegarem, em 2024. Isso poderá deixar Thomas na posição embaraçosa de ganhar uma vaga na equipe olímpica norte-americana, mas ser inelegível para competir em Paris. A política da Fina prevaleceria sobre a política da USA Swimming (federação dos Estados Unidos).

Apenas uma coisa parece certa, disse Tommy Lundberg, pesquisador sueco que estudou atletas transgênero: "Será impossível agradar a todo o mundo".

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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