Descrição de chapéu LGBTQIA+

'Sou bissexual', diz ex-jogador Richarlyson; para entidades, declaração fortalece combate à homofobia

Posicionamento é uma 'referência positiva para pessoas de orientação sexual distinta da heterossexualidade', diz presidente da ABGLT, Symmy Larrat

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Nathan Fernandes
Córdoba (Argentina)

Pela primeira vez, o ex-jogador Richarlyson falou sobre sua sexualidade publicamente. Em entrevista ao podcast "Nos Armários dos Vestiários", do Globo Esporte, o ex-volante e hoje comentarista da Globo declarou ser bissexual. É a primeira vez que um jogador com passagens pela Série A e pela seleção brasileira se diz abertamente não heterossexual.

"Pelo tanto de pessoas que falam que é importante meu posicionamento, hoje eu resolvi falar: sou bissexual. Se era isso o que faltava, ok. Pronto. Agora eu quero ver se realmente vai melhorar, porque é esse o meu questionamento", propõe o atleta.

Apesar da abertura, ele se mostrou cético em relação às mudanças. "O Brasil é o país que mais mata homossexuais. E a gente está aqui falando de futebol, ok, mas o futebol é um negocinho pequeno", afirmou ao Globo Esporte.

O jogador Richarlyson, durante evento no Morumbi em 2019; em entrevista ao podcast “Nos Armários dos Vestiários”, do Globo Esporte, o ex-volante e hoje comentarista da Globo declarou ser bissexual - Greg Salibian - 16.dez.2019/Folhapress

"Ah, mas sua fala pode ajudar. Não, não vai ajudar. Quem é Richarlyson, pelo amor de Deus?! Sou um mero cidadão comum, que teve uma história bacana no futebol, mas eu não vou poder mover montanhas para que acabem esses crimes, para que acabe a homofobia no futebol."

Para Symmy Larrat, presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) —a organização LGBTQIA+ mais antiga do país—, o que não muda é a capacidade profissional do ex-atleta. "Isso mostra que pessoas LGBTQIA+ são tão competentes quanto qualquer um", afirma.

Richarlyson tem uma coleção rara de títulos que inclui um Mundial e três Campeonatos Brasileiros pelo São Paulo, uma Libertadores e dois Mineiros pelo Atlético-MG, um Paulista pelo Ituano e uma Copa São Paulo pelo Santo André. Mesmo assim, nunca foi o jogador mais aclamado dos estádios. Quando jogava pelo São Paulo, em seu melhor momento, chegou a ser ignorado pelos torcedores, que gritavam todos os nomes da escalação do time. Menos o seu.

Apesar de não se relacionar com a competência, o posicionamento do atleta impacta profundamente na percepção que pessoas LGBTQIA+ podem ter sobre si mesmas. "Isso mostra que a gente não pode deixar de lutar para ocupar todos os lugares", afirma Larrat.

"Eu, por exemplo, sou travesti e nunca tive referências de profissionais trans na minha adolescência. Nunca achei que poderia ocupar a posição que ocupo hoje. Logo, o posicionamento do Richarlyson acaba sendo uma referência positiva para pessoas de orientação sexual distinta da heterossexualidade."

Em 2007, o então dirigente do Palmeiras José Cyrillo Júnior insinuou em rede nacional que Richarlyson seria gay, iniciando o debate sobre a sexualidade do jogador. O ex-volante prestou queixa, e o cartola teve que se retratar.

A ação judicial, porém, foi arquivada pelo juiz Manoel Maximiniano Junqueira Filho, que afirmou que a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro poderia prejudicar o pensamento da equipe. Na sentença, apontou que futebol era "coisa de macho".

Como lembra Larrat, o futebol não tem um histórico de inclusão, portanto, é compreensível que uma pessoa não queira falar sobre sua orientação sexual publicamente. "É importante se posicionar, mas nunca devemos cobrar isso dos outros, só quem passa pela pressão de um preconceito sabe o que acontece", afirma.

Até meados do século 20, o futebol no Brasil se mantinha como uma prática elitista, varrendo pessoas pobres e negras do cenário. Só com a profissionalização do esporte, em 1933, as coisas começaram a mudar. Ainda naquela década, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, mulheres também eram oficialmente proibidas de jogar pelo Conselho Nacional dos Desportos.

"O futebol está em constante transformação. E, ainda que muitos não aceitem, é um espaço de luta social e política", escreveu o jornalista João Abel, no livro "Bicha! Homofobia Estrutural no Futebol".

Na obra, o autor lembra que só em 1990 a homossexualidade deixou de ser classificada como doença pela OMS. Já a transexualidade só foi retirada da lista de distúrbios mentais em 2018. Além disso, apenas em 2019 o Supremo Tribunal Federal decidiu igualar a homofobia ao crime de racismo. Nesse sentido, o futebol é apenas o reflexo de uma sociedade ainda preconceituosa.

Para Volmar Santos, criador da Coligay, torcida LGBQIA+ do Grêmio —que atuou entre 1977 e 1983, em plena ditadura, e é considerada uma das pioneiras do tipo no Brasil—, o preconceito é tão presente no futebol que, em muitos casos, ele é internalizado. "Muitas pessoas não falam abertamente sobre sua sexualidade porque são tão preconceituosas quanto as pessoas que têm preconceito", afirma. "Fico feliz pelo posicionamento do Richarlyson, e espero que isso abra o caminho para que mais pessoas se sintam confortáveis consigo mesmas."

Richarlyson em treinamento durante o período em que defendeu o São Paulo - Fernando Santos - 23.out.2005/Folhapress

Ações como a do Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ ajudam a combater a LGBTfobia dentro dos estádios. Em dezembro de 2021, a organização acionou oito clubes brasileiros no STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) por atos de homofobia praticados pelas torcidas de Atlético-MG, Ceará, Corinthians, Fluminense, Internacional, Náutico, Paysandu e Remo. Desde de 2019, o tribunal recomenda que os árbitros relatem em súmula manifestações preconceituosas nas partidas.

Como lembra Symmy Larrat, a LGBTfobia é reforçada pelas equipes através de cânticos de torcida, brincadeiras e piadas que diminuem pessoas LGBTQIA+. "Imagina ser um atleta e ficar escutando isso o tempo todo. Mesmo que não seja diretamente com você, é um espaço muito ofensivo", aponta.

"Parabenizo muito o Richarlyson. Entendemos a dificuldade, e entendemos que isso não deveria ser assunto em uma sociedade realmente livre de preconceitos. Esperamos que um dia ninguém seja pressionado a falar da sua vida pessoal. Mas, com certeza, a posição dele ajuda outros atletas a não passar pelo que ele passou."

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