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Vítima de tráfico humano, Mo Farah superou trauma para se forjar um vencedor

Dono de quatro ouros olímpicos chegou ilegalmente ao Reino Unido

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Jeré Longman
The New York Times

Meu primeiro encontro com ele foi imprevisto, clandestino. Ocorreu em Albuquerque, no Novo México (EUA), em outubro de 2010. Eu viajei para lá para escrever sobre outro corredor, o americano Dathan Ritzenhein, que estava treinando para a Maratona de Nova York daquele ano com seu novo treinador, Alberto Salazar, um ex-astro que se transformou em um modelador excêntrico, fazendo alterações na postura e no passo de Ritzenhein.

Havia outro atleta no treino, silencioso e retraído, que foi apresentado como Mo Farah.

Ele havia se tornado recentemente o primeiro homem britânico a vencer os 5.000 e os 10.000 metros nos campeonatos europeus, mas ainda não era quatro vezes medalhista de ouro olímpico e seis vezes campeão mundial. Apertamos as mãos, mas a presença de Farah naquele dia foi sigilosa, como um encontro de espiões numa ponte em Berlim, em vez de uma reunião casual numa manhã clara e fresca em pleno deserto.

Mo Farah celebra com a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos Rio-2016
Mo Farah celebra com a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos Rio-2016 - Damien Meyer - 13.ago.16/AFP

Não lembro o motivo do sigilo. Provavelmente ainda não tinha sido oficializado que Salazar seria o treinador de Farah. De qualquer modo, Salazar me pediu para não mencionar o nome ou a presença de Farah. Ele parecia um fantasma.

Lembrei-me desse encontro breve e furtivo, com o ocultamento e a identidade camuflada, quando Farah fez a revelação impressionante em um documentário da BBC, nesta semana, de que ele foi traficado com um nome falso da Somália, no leste da África, para a Grã-Bretanha, quando tinha 9 anos, e obrigado a trabalhar como empregado doméstico.

Sua chegada terrível foi mais tarde aliviada pelo incentivo de um professor de educação física, e Farah se tornou um dos maiores corredores de longa distância do mundo. Ele é o único homem, com exceção de Lasse Viren, o astro finlandês da década de 1970, a vencer os 5.000 metros (3,1 milhas) e os 10.000 metros (6,2 milhas) em Olimpíadas sucessivas. Farah também venceu esses eventos três vezes cada no campeonato mundial de atletismo. De 2011 a 2017, ele foi quase imbatível na pista nas maiores competições do esporte.

O estilo de corrida de Farah não era diferente da maneira como ele enfrentava as vicissitudes da vida –começando lá atrás, perseverando volta após volta, paciente e resiliente, e terminando com um sprint brilhante.

Em 4 de agosto de 2012, nas Olimpíadas de Londres, diante de uma pulsante torcida de 80.000 espectadores, a Grã-Bretanha ganhou três medalhas de ouro no atletismo em um espaço de 45 minutos. Farah proporcionou a festa da coroação nos 10.000 metros, dando ao Reino Unido sua primeira vitória olímpica em corrida de longa distância em mais de um século.

Em uma corrida tática de 25 voltas que começou devagar, Farah esperou até o final para assumir a liderança. Ele correu a última milha em cerca de 4 minutos e 8 segundos e a volta final em 53,48 segundos. Um grupo de 11 corredores se separou em cinco e se dissolveu em ondas desesperadas, deixando Farah inalcançável na reta final, à frente do medalhista de prata, seu parceiro de treino Galen Rupp, dos Estados Unidos.

Quando entrou no estádio, disse Farah mais tarde naquela noite: "Fiquei realmente tonto, como se tivesse tomado dez xícaras de café". Naquele momento de adrenalina e expectativa, ele percebeu: "Tenho que fazer alguma coisa".

Ele não era um vencedor estoico, mas alguém cuja alegria e prazer eram contagiantes.

Uma semana depois, Farah venceu os 5.000 metros de forma semelhante –um início comedido que virou um final emocionante. Seu amigo Usain Bolt juntou-se à vertigem, colocando os braços sobre a cabeça para formar um M e representando a celebração jubilosa do "Mobot" de Farah.

Mesmo quando a forma descontraída e eficiente de Farah o traía, pouco importava. Vimos isso quando ele foi acidentalmente derrubado por Rupp nos 10.000 metros nas Olimpíadas de 2016 no Rio. Farah se levantou rapidamente e ainda ganhou a medalha de ouro, depois conquistou uma segunda vitória nos 5.000 metros. Em 2017, Farah foi designado cavaleiro pela rainha Elizabeth 2ª no Palácio de Buckingham, embora, seguindo o costume real tradicional, ele não tenha pedido que ela fizesse o Mobot.

Farah usava cartola e fraque e disse a repórteres que tinha sonhado com "se tornar algo" ganhando uma medalha de ouro olímpica. "Como uma criança de 8 anos vindo da Somália sem falar uma palavra de inglês, ser reconhecido pelo seu país é incrível", disse ele.

Mo Farah sempre carregou a bandeira britânica com orgulho - Martin Buereau - 5.set.20/Reuters

Sua história, porém, foi mais complicada que isso, dentro e fora das pistas.

Seu ex-técnico Salazar arruinou a própria carreira por acusações de promover doping e de má conduta sexual. Ele negou qualquer transgressão. Farah nunca foi acusado de doping e negou isso veementemente, mas, em um esporte praticado nas artes obscuras das substâncias proibidas, sombras de suspeita foram lançadas sobre suas conquistas.

Ele contou várias histórias sobre o uso de L-carnitina, substância que transforma gordura em energia e é legal, a menos que seja infundida em quantidades excessivas. A substância foi citada pelas autoridades antidoping na sanção de Salazar. Nove anos atrás, em uma autobiografia chamada "Twin Ambitions" (Ambições duplas), Farah fez um relato um pouco diferente de sua criação. A Polícia Metropolitana de Londres está investigando suas acusações de que foi traficado.

Se as afirmações forem confirmadas, Farah teria contado à BBC uma história ao mesmo tempo triste e inspiradora, revelando o triste começo e a corajosa determinação de sua vida. Ele teria vencido sua corrida mais importante. Aos 39 anos, ele continuaria a correr e não seria mais perseguido por seu passado.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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