Marina Izidro

É jornalista e vive em Londres. Cobriu seis Olimpíadas, Copa e Champions. Mestre e professora de jornalismo esportivo na St Mary’s University

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Descrição de chapéu atletismo

História de estrela do atletismo britânico sensibiliza sobre vítimas de tráfico humano

Dono de quatro ouros olímpicos conta que seu nome foi trocado quando chegou ilegalmente ao Reino Unido

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"Não sou quem você pensa." Assim Mohamed Farah revelou em um documentário da BBC o segredo guardado por 30 anos. O caso atraiu atenção não só por envolver o maior medalhista olímpico da história do atletismo britânico mas por se repetir, em silêncio, com milhares.

Nas Olimpíadas de Londres de 2012, Mo Farah foi ouro no atletismo nos 5.000 m e nos 10.000 m. Lembro-me das passadas largas, dos olhos arregalados na chegada e da comemoração com os braços na forma de um coração. No Rio, em 2016, foi campeão olímpico de novo nas duas provas.

Tornou-se "sir" ao receber um título de nobreza da rainha Elizabeth 2ª por serviços prestados ao esporte. Entrevistei-o em 2011, quando era aluna da St Mary’s University, onde dou aulas. A universidade tem programas de excelência em corrida, e Mo treinou anos por lá. Ele e a esposa Tania foram superatenciosos. Nunca esqueci a atenção que deram para aquela "mera" estudante.

Mo Farah se mostrou bastante atencioso - Martin Bureau - 5.set.20/AFP

Ele sempre disse publicamente que chegou ao Reino Unido com os pais aos oito anos de idade como refugiado da Somália. Nesta semana, em "O Verdadeiro Mo Farah", contou qual é de fato sua origem em um depoimento tocante.

Nasceu na Somalilândia, região autônoma da Somália, e seu nome era Hussein Abdi Kahin. O pai morreu na guerra civil do país quando ele tinha quatro anos. Aos oito ou nove, foi separado da mãe e levado para Londres ilegalmente por uma desconhecida. Ao chegar à imigração, a mulher lhe deu um documento com o nome de outro menino, Mohamed Farah, e disse que se chamaria assim dali por diante.

Ela então rasgou o papel, e Mo foi obrigado a trabalhar como empregado doméstico para receber comida. Tinha que fazer faxina, cuidar das crianças. Trancava-se no banheiro e chorava, sonhando reencontrar a família "em algum lugar, algum dia". Na escola, professoras não entendiam por que os pais do aluno indisciplinado com inglês precário nunca apareciam.

Um se importou: o professor de educação física, que viu nele talento para corrida. Mo criou coragem e contou tudo a ele. Uma família o adotou, e a vida mudou. Como precisava viajar para competir e não tinha documentação, o professor o ajudou a tirar a cidadania britânica. Reencontrou a mãe e o irmão gêmeo. Hoje, tira fotos de momentos importantes porque não se lembra do rosto do pai. Deu o nome de Hussein ao filho.

O caso gera mais empatia porque o menino que cresceu sem a família e sempre carregou a bandeira britânica com orgulho lidou com o preconceito até no auge da carreira. Em 2012, foi alvo da campanha de mau gosto do tabloide Daily Mail, que criou o termo "britânicos de plástico" para designar atletas da Grã-Bretanha que não nasceram no país. Detalhe: o sucesso nos Jogos em casa foi muito graças a eles, com um terço das medalhas conquistadas pelos nascidos em outro país ou filhos de pais não britânicos.

Mo Farah sempre carregou a bandeira britânica com orgulho - Martin Buereau - 5.set.20/Reuters

​Mo passou a vida com medo de que a cidadania fosse retirada por fraude porque usou o nome de outra pessoa, mesmo sem saber. Autoridades já disseram que não vão fazer nada.

A revelação gera debate, já que o governo endureceu a política de imigração e quer deportar para Ruanda quem normalmente tenta refúgio fugindo de guerras ou em situações de risco. Uma especialista diz no filme que 10 mil pessoas foram potenciais vítimas de tráfico humano no Reino Unido no ano passado e que o número real pode chegar a 100 mil. Tantos Mo Farahs, desconhecidos por não ter uma medalha olímpica no peito.

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