Como a Fifa silenciou a campanha de braçadeiras LGBTQIA+ na Copa

Ameaças cresceram minutos antes de a bola rolar e intimidaram as seleções

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tariq Panja
Doha (Qatar) | The New York Times

Faltavam algumas horas para a partida inicial da Copa do Mundo de futebol quando os líderes de um grupo de federações europeias chegaram ao luxuoso Fairmont Hotel para uma reunião. A propriedade cinco estrelas, convertida em sede do torneio para a diretoria da Fifa (Federação Internacional de Futebol), era um cenário improvável para uma briga. Mas, com as partidas prestes a começar, teria que servir.

Até então, fazia meses que as federações e os representantes da Fifa se reuniam para discutir um plano do grupo de seleções de usar braçadeiras multicoloridas com a mensagem "One Love" durante as partidas do torneio no Qatar. A Fifa não gostou da ideia, mas as equipes –que incluíam Alemanha, Inglaterra, Holanda e Bélgica– sentiram que uma paz tácita havia sido acordada: as equipes usariam as braçadeiras, e a Fifa faria vistas grossas, então os multaria discretamente mais tarde por quebrar suas regras sobre uniformes.

Em uma sala de conferências no Fairmont em 20 de novembro, porém, tudo mudou. Com as amplas janelas da sala e a vista panorâmica do Golfo Pérsico às costas, Fatma Samoura, segunda executiva da Fifa, disse às federações que suas braçadeiras seriam não apenas contra o regulamento de uniformes do torneio mas também consideradas uma provocação ao Qatar, o anfitrião do torneio, e a outras nações islâmicas e países africanos. Elas não seriam permitidas, disse Samoura.

Os europeus ficaram surpresos.

Só faixas com inscrições definidas pela Fifa, como "Educação para todos", foram permitidas durante a Copa do Mundo do Qatar - Hannah Mckay - 6.dez.22/Reuters

As 24 horas que se seguiram –uma enxurrada de reuniões e ameaças, vozes elevadas e provocações– são apenas uma lembrança passada a final da Copa do Mundo no domingo (18). A Fifa não respondeu imediatamente a um pedido de comentário sobre as discussões; esta reportagem se baseia em entrevistas com vários participantes das conversas, muitos dos quais pediram o anonimato porque não tinham permissão para relatar discussões privadas à mídia.

A campanha "One Love" ("Um Amor"), iniciada na Holanda há três anos como um esforço para promover a inclusão, transformou-se em uma das maiores controvérsias dos primeiros dias da Copa do Mundo. Mais de um mês após seu fim repentino, o episódio continua instrutivo como uma demonstração extraordinariamente vigorosa do poder que a Fifa exerce sobre suas federações-membros; a influência que pode ter para forçar a conformidade em desacordos; e a forma como uma campanha de justiça social marcada para o maior palco do esporte pode ser silenciada em 24 horas.

Algumas das nações europeias que disputaram a Copa do Mundo –Inglaterra, Holanda, Dinamarca, Alemanha, Bélgica, País de Gales e Suíça– e dois países que não se classificaram, Noruega e Suécia, encontraram uma causa comum meses antes. Atingidos por críticas crescentes à Copa do Mundo do Qatar, eles planejaram destacar sua mensagem de inclusão durante as partidas do torneio. A campanha ocorreu depois que o país anfitrião enfrentou uma década de escrutínio sobre seu histórico de direitos humanos, o tratamento dispensado aos trabalhadores migrantes e a criminalização da homossexualidade.

A ministra alemã do Interior, Nancy Faeser, usa a braçadeira com a inscrição 'One Love' durante a Copa do Mundo do Qatar; o adereço foi vetado pela Fifa para jogadores, que usaram faixas oficiais da entidade máxima do futebol
A ministra alemã do Interior, Nancy Faeser, usa a braçadeira com a inscrição 'One Love' durante a Copa do Mundo do Qatar; o adereço foi vetado pela Fifa para jogadores, que usaram faixas oficiais da entidade máxima do futebol - Matthew Childs - 23.nov.22/Reuters

Nos bastidores, à medida que o torneio se aproximava, as federações buscavam esclarecimentos da Fifa sobre o que ela poderia fazer quando os capitães entrassem em campo com uma braçadeira que não havia sido aprovada pela organização.

Em uma reunião em 12 de outubro na sede da entidade na Suíça, representantes das equipes estiveram com altos funcionários da Fifa, incluindo seu vice-secretário-geral, Alasdair Bell, e Andreas Graf, chefe do departamento de direitos humanos. As autoridades falaram sobre reformas trabalhistas no Qatar, sobre a possibilidade de um esquema de compensação para trabalhadores migrantes e sobre as preocupações com a segurança dos torcedores gays que iriam à Copa do Mundo. O item final da agenda foi a braçadeira "One Love".

"Expressamos firmemente que usaríamos a braçadeira –que para nós não havia discussão sobre isso", disse Gijs de Jong, secretário-geral da federação de futebol da Holanda, ao New York Times. O grupo disse aos dirigentes da Fifa que suas federações estavam dispostas a aceitar multas por violação dos regulamentos de uniformes da Copa do Mundo, que eles entendiam ser a punição máxima que a Fifa poderia impor por tal violação.

Os dirigentes da Fifa responderam que discutiriam o plano da braçadeira e retornariam com uma resposta. Mas não responderam. As perguntas da mídia também ficaram no ar.

De Jong disse que interpretou o silêncio da Fifa como um sinal de que, embora o órgão dirigente do futebol claramente não estivesse satisfeito com o plano, poderia olhar para o outro lado por tempo suficiente para a Copa do Mundo acontecer.

"Achei que, neste caso, eles não proibiriam, mas também não dariam permissão –apenas deixariam passar", disse de Jong. "Achei que isso aconteceria, e talvez receberíamos uma multa."

Tudo mudou quando as seleções chegaram a Doha, nos dias que antecederam o torneio.

Algumas das equipes realizaram eventos com trabalhadores migrantes em suas bases de treinamento, e, em coletivas de imprensa, seus capitães foram questionados sobre o plano de usar as braçadeiras. Alguns se comprometeram novamente com a ideia. Mas o capitão francês, Hugo Lloris, que usou a braçadeira "One Love" durante jogos na Europa, disse que não participaria da campanha na Copa do Mundo, citando respeito pelo Qatar, nação muçulmana conservadora e primeira sede árabe da Copa.

Apesar dos sentimentos de Lloris, nada parecia ter mudado para as outras equipes. Elas permaneceram firmes em suas convicções naquele momento, embora tenham ficado alarmadas com um discurso do presidente da Fifa, Gianni Infantino, que criticou as atitudes europeias em relação ao Qatar na véspera do jogo de abertura.

Os representantes europeus tinham decidido deixar as palavras dele passarem batido quando entraram numa sala de reuniões no Fairmont. Sentados ao redor de uma mesa tão grande que um executivo presente a comparou com as usadas pelo presidente russo, Vladimir Putin, eles tiveram mais conversas sobre as questões de direitos e da braçadeira, que àquela altura já tinha uma concorrente. Dias antes, a Fifa havia surpreendentemente anunciado uma campanha de braçadeiras próprias: suas versões traziam slogans como "Sem discriminação", "Salve o planeta" e "Educação para todos".

A delegação europeia elogiou a campanha —que foi copatrocinada pela ONU (Organização das Nações Unidas)—, mas reiterou que seus capitães usariam braçadeiras "One Love", conforme planejado. Mais uma vez, os representantes da federação partiram com a sensação de que havia um compromisso tácito.

"Usaremos a braçadeira, reconheceremos sua campanha, e vocês vão devagar com os procedimentos disciplinares", disse de Jong quando solicitado a descrever o clima após o término da reunião. "Apliquem multas depois da Copa."

Dentro de 24 horas, porém, o clima e o tom mudaram repentinamente. Depois de uma cúpula das 211 federações-membros da Fifa liderada por Infantino, as seleções europeias e representantes da Noruega e da Suécia, dois países que não se classificaram para a Copa, mas se manifestaram sobre a Copa do Mundo do Qatar, foram conduzidos mais uma vez à sala de conferências. Lá, Samoura, uma ex-funcionária da ONU do Senegal que não havia estado presente na reunião anterior, assumiu um tom mais contundente.

Surpreendendo os presentes, ela alertou que as punições que enfrentariam seriam imediatas e direcionadas aos jogadores envolvidos. Vozes se ergueram. Segundo um responsável europeu que esteve presente na reunião, Samoura, durante uma pausa para o café, chegou a sugerir a um delegado da Bélgica que, se a sua equipa continuasse promovendo a braçadeira "One Love", poderia encorajar as equipes africanas a usarem versões que protestam contra os abusos coloniais do passado. A Fifa, indagada diretamente sobre o incidente, disse que não comentaria os detalhes da reunião.

À medida que o encontro passava de duas horas, aproximando-se da hora em que todos os presentes precisavam ir ao estádio Al Bayt para o jogo de abertura da Copa do Mundo, uma pergunta acabou sendo feita à Fifa: o que fará se os times forem em frente? Uma autoridade da Fifa sugeriu que o comissário da partida poderia remover a braçadeira de qualquer capitão que a usasse. "Dissemos: 'Boa sorte com Virgil van Dijk'", disse de Jong, referindo-se ao capitão holandês de 1,95 metro.

O grandalhão Van Dijk acabou não desafiando o árbitro - Alberto Pizzol - 9.dez.22/AFP

Ainda assim, quando a reunião terminou, as punições esportivas se tornaram, pela primeira vez, uma clara possibilidade.

Naquela noite, no estádio, enquanto o Qatar perdia para o Equador na estreia, os integrantes do grupo europeu se reuniram, preparando-se para o pior. Eles rapidamente chegaram a um acordo de que, se houvesse uma punição para seus jogadores –a Fifa estava ameaçando dar cartão amarelo a qualquer capitão que violasse as regras de uniformes–, eles não colocariam suas principais estrelas em uma situação em que tivessem que fazer uma escolha.

Mas a Fifa ainda não tinha dado nenhuma certeza, e, a essa altura, a Copa do Mundo havia começado. Três dos times europeus jogariam no dia seguinte, e os demais nos dias subsequentes. Na segunda-feira, na manhã seguinte ao jogo de abertura, a primeira dessas seleções, a Inglaterra, recebeu uma delegação de alto nível da Fifa, incluindo o diretor de competições, Manolo Zubiria, e o chefe de relações com a mídia, Bryan Swanson, em seu hotel em Al Wakrah, no Qatar.

Lá, a Fifa aumentou a pressão. De acordo com de Jong, que disse ter sido chamado imediatamente por Mark Bullingham, chefe da Federação Inglesa, a Fifa deixou claro que a ameaça de cartão amarelo foi apenas uma sanção mínima. "Eles insinuaram que poderia ser uma suspensão de um jogo para um jogador", disse de Jong.

As federações concordaram que a ameaça da Fifa era "sem precedentes" e provavelmente seria anulada em uma contestação legal. Mas eles não tinham tempo. "O que você vai fazer em campo?", disse de Jong. "Mandar seu advogado para lá?"

A campanha fracassou. As equipes anunciaram que pediram a seus capitães para não usar as braçadeiras. Os jogadores obedeceram, e o torneio continuou.

Todas as equipes acabaram entrando em campo sem incidentes. Quando muitos de seus capitães usaram braçadeiras, foram com mensagens aprovadas pela Fifa.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.