Descrição de chapéu Pelé, o Edson

Para o homem negro que viveu dentro do Pelé

Cresci com o orgulho que meu pai sentia de ver um preto retinto na mais alta consideração do mundo, mas Edson era muito mais que Pelé

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Eliana Alves Cruz

Roteirista, jornalista e escritora vencedora do Prêmio Jabuti de contos de 2022

Eu não te vi jogar. Quando pude entender o que era o futebol, você já estava se encaminhando para o final de uma carreira de tanto brilho que fez do seu nome sinônimo de qualidade para tudo. Era comum ouvir alguém se referir a um talento, a uma pessoa de referência em sua área de atuação: "fulano é um Pelé no que faz". Como uma menina negra, filha de pai negro da sua mesma idade, cresci com o orgulho que ele sentia em te ver na alta consideração do mundo –que tinha por costume (e ainda tem) colocar homens pretos retintos na subalternidade, mesmo que fossem "Pelés" no que faziam.

No Brasil, você foi o primeiro grande pop star internacional negro. Nenhum artista ou atleta brasileiro tinha chegado ao mundo com igual fama até então. Uma época em que todos os meninos queriam a mesma habilidade, a mesma oportunidade, a mesma fama, o mesmo dinheiro, o mesmo prestígio...

Pelé ao lado da Taça Fifa, antes da Copa do Mundo de 2014, no Brasil; atleta do Século foi reverenciado no mundo - Franck Fife - 9.mar.2014/AFP

Vivemos em um mundo e em um país difícil. Um mundo que cria exceções para convencer a maioria da ilusão de que um dia elas poderão vir a ser a regra. Todos queriam usar a camisa 10 e erguer aquele punho cerrado em soco no ar após um gol.

Acho que você sempre soube disso e, durante décadas, dentro de campo, fez o possível (e o impossível) para manter este sonho e este desejo vivos e aquecidos dentro dos olhos da gigantesca torcida brasileira, mesmo aquela que, como eu, não se lembra de te ver jogar.

O que talvez não tenha ficado assim tão nítido e evidente para você é que o fascínio despertado pela sua atuação dentro daquelas quatro linhas do campo tinha raízes muito profundas, pois o seu corpo, o meu, o do meu pai, o da minha mãe, o das pessoas pretas como nós, sempre foi tratado como destituído de humanidade e, consequentemente, de inteligência naqueles moldes da cabeça separada da força dos braços, do abdômen, dos glúteos, da panturrilha, dos pés. Uma existência centrada no pensamento como sinal da existência.

Nós não nos encaixamos nesse padrão por um motivo simples: de onde vieram nossos ancestrais, a existência e a inteligência estão em cada célula, em cada movimento, em cada drible que o tórax joga para um lado, mas as pernas puxam para outro, no domínio absoluto daquela esfera no peito do pé, em cada arrancada veloz rumo ao gol. Na cabeça que antecipa e, por isso mesmo, é capaz de imaginar exatamente para onde o seu e o corpo do outro vão, mas, principalmente, até onde conseguimos resistir ao ataque. Se não tivéssemos essa inteligência de antecipar movimentos e cálculo, Pelé, não existiria você, eu, meu pai, minha mãe e as pessoas pretas como nós, pois o mundo, para nós, sempre foi puro ataque. Esta é, no fundo, a magia. A densa identificação que temos. O nosso elo ancestral.

Eu, como filha de pai negro da sua mesma idade, me senti profundamente atingida quando das tuas histórias de paternidade rachada, negada, esfacelada, com uma filha quase da mesma idade que eu tinha. Histórias que nunca foram a minha com o meu pai, mas poderiam ser a de muitos homens (pretos ou não) que conheci, que conheço. O mesmo amor que eu recebia, queria para aquela sua filha.

Demorou muito para que eu entendesse a nossa desgraça como sociedade construída para onerar a nós, mulheres, com todos os pesos da manutenção dos afetos familiares e criação dos filhos. Como esta é uma conversa sincera, mesmo que não possa ouvir tuas respostas, lhe digo que consigo explicar, mas não justificar. No entanto, também não sei o que é ter sido você. Só posso lamentar pelo que foi perdido, esperando que algum espaço haja para a recuperação dos afetos, ainda que em outro plano.

Depois de tantas décadas no holofote do mundo, sei que fica difícil lembrar que antes do Pelé existia o Edson Arantes do Nascimento, que carrega em si essas coisas ditas aqui e tantas mais. Existia em algum lugar um menino... Fica difícil separar o que foi seu e o que foi construção do imaginário ávido por fazer ídolos e algozes, como se entre um e outro não existisse nada ou se um e outro não convivessem dentro de cada um de nós.

E o que sobra agora?

Sobra a vontade de correr com a velocidade de um corpo ágil, inteligente, brilhante, veloz, certeiro.

Permanece a vontade de socar o ar com o punho cerrado, num salto para o alto que fique congelado ali, no ar, no espaço feito de matéria invisível e essencial à vida.

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