Há 80 anos, Santa Cruz completava 'a maior epopeia da história humana'

Excursão à Amazônia em 1943 teve cerco nazista, ataque indígena, duas mortes e até futebol

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São Paulo

"Certa feita", conta o historiador Luiz Antonio Simas, um aluno lhe perguntou qual teria sido a maior epopeia da história humana. Passaram pela cabeça do professor episódios como a construção das pirâmides do Egito, as aventuras de Gengis Khan, a chegada do homem à lua "e outros babados".

"Pensei um pouco em todos esses fatos e emiti minha opinião: 'A maior epopeia de todos os tempos foi uma excursão que o time de futebol do Santa Cruz fez aos confins da Amazônia em 1943'", relatou Simas, no livro "Ode a Mauro Shampoo e Outras Histórias da Várzea" (Mórula, 2017), que tem um capítulo dedicado à saga tricolor.

Há 80 anos, a equipe pernambucana fez jornada rumo ao Norte do Brasil, com o intuito de arrecadar dinheiro em amistosos. Partiu em 2 de janeiro, no escuro. Só conseguiu retornar ao Recife em 29 de abril, com quatro jogadores a menos, dois deles mortos, e eventos quase inacreditáveis, que justificam a inclusão da viagem na lista das mais fabulosas aventuras da humanidade.

Reprodução de reportagem da Placar de 1979, que retratava a excursão feita pelo Santa Cruz em 1943
Placar mostrou o time do Santa Cruz na épica viagem de 1943; estão marcados com um "x" os jogadores que morreram na excursão, King e Papeira - Reprodução/Placar

Estava em curso a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Submarinos alemães rondavam a costa brasileira. Dias antes, tinha sido afundado o navio Aranguá, no litoral de Sergipe. Por isso, a delegação do Santa Cruz começou seu trajeto à noite, luzes apagadas, com a embarcação escoltada por outras duas, da Marinha de Guerra.

Essa circunstância já seria suficiente para que a empreitada fosse tratada como insana, mas a primeira perna da viagem foi completada sem o registro de maiores incidentes. O time chegou a Natal, fez 6 a 0 na seleção potiguar e, de lá, partiu a Belém.

Ainda não havia pistas de que aquela seria conhecida como "a excursão suicida" ou "a excursão da morte", título de reportagem da revista Placar, que em 1979 reconstruiu "uma viagem que teve de tudo – até mortes". "Em plena II Guerra, a heróica viagem de um time" era o subtítulo do texto de Lenivaldo Aragão, que ouviu relatos de sobreviventes e pintou toda a empresa com suas devidas tintas épicas.

Foi no percurso seguinte, após duas vitórias, dois empates e uma derrota no Pará, que a excursão começou a virar epopeia. O caminho pelo rio Amazonas foi feito em um navio que rebocava um carregamento de alimentos destinados ao Acre.

"O trajeto até Manaus durou simplesmente quinze dias, com direito a três dias em que a embarcação não pôde seguir por um motivo muito simples: índios armados de bordunas, tacapes e zarabatanas sequestraram o grupo para pegar os alimentos. Resolvido o entrevero com os índios, a equipe finalmente chegou à capital do Amazonas", relatou Simas.

Chegou cansada. O longo trajeto não configurou o que se considera uma boa preparação.

"Fora de casa, sem notícias, a gente acabava bebendo", contou o ponta-direita Guaberinha à Placar. "Chega noite em que o time inteiro é flagrado na casa de máquinas do vapor, tomando um memorável pileque com alguns membros da tripulação", descreveu a revista.

Não surpreende que o primeiro resultado em Manaus tenha sido uma derrota, 3 a 2 para o Olímpico. A ressaca passou, com uma vitória por 6 a 1 sobre o Nacional, mas apareceu algo pior. O chefe da delegação, Aristófanes Trindade, e seis jogadores passaram a sofrer com forte infecção intestinal, o que não os impediu de jogar.

Terminada a temporada manauara e frustrada uma tentativa de jogar nas Guianas e no Peru –a CBD (Confederação Brasileira de Desportos) vetou, por causa da guerra, com ameaça de suspensão por 90 dias–, o grupo retornou para nova sequência de jogos em Belém. Mas não inteiro. Sidinho (que depois mudaria de ideia e retornaria), Pelado e Omar ficaram no Amazonas, atraídos por ofertas de clubes locais.

Logo, haveria novas baixas, mais trágicas.

Internado em Belém, sem a devida recuperação da disenteria da semana anterior, o goleiro King teve diagnóstico de febre tifoide e não resistiu. Morto na madrugada de 3 de março, foi enterrado na capital paraense, em cerimônia com honrarias, o que não fez o Santa Cruz abortar a excursão.

Reprodução do Jornal Pequeno, que noticiou a morte do goleiro King, do Santa Cruz, em 1943
King foi velado na Federação Paraense Desportiva - Reprodução/Jornal Pequeno

Houve um minuto de silêncio antes da partida contra o Paysandu em 8 de março, domingo de Carnaval. Nesse dia, a febre tifoide foi fatal com mais um jogador, Papeira. E a excursão seguiu.

"Era até normal ver o pessoal chorando. Limoeirinho chorava, Amaro Cajá era dos mais chorões. Eu mesmo chorei algumas vezes, pensando na família. Era duro querer voltar e não ter condições", recordou Guaberinha, então com 60 anos, à Placar.

Uma das partidas realizadas em Belém, um empate por 3 a 3 com um combinado formado por atletas do Remo e do Paysandu, tinha como chamariz a renda revertida às famílias dos mortos. Mas o Santa Cruz já não causava a comoção que provocara na chegada, com estádios cheios, e atuou com arquibancadas vazias.

Reprodução do Diario de Pernambuco, que em 1943 relatou a morte de jogadores do Santa Cruz em excursão pelo Norte
Santa Cruz foi criticado pelo prosseguimento da excursão - Reprodução/Diario de Pernambuco

Era hora de tomar novo rumo, e o destino escolhido foi São Luís. Não haveria mais mortes, mas a maior epopeia humana ainda ganharia capítulos relevantes, como o percurso até o Maranhão.

"Para juntar algum dinheiro, os jogadores trocam as passagens de primeira por outras de terceira classe. E são obrigados a viajar na companhia de uma corja de 35 ladrões que a polícia do Pará está exportando para o Maranhão. Por via das dúvidas, as 15 taças que o clube ganhou na excursão são guardadas cuidadosamente. Medida desnecessária – pois os ladrões e os jogadores acabam se tornando bons amigos", relatou, na Placar, Lenivaldo Aragão.

Em São Luís, com baixas por motivo de deserção, lesão, doença e morte, o time chegou a entrar em campo completado pelo cozinheiro do navio. A essa altura, já havia começado o Campeonato Pernambucano, e o Santa Cruz disputava a competição com os reservas que não viajaram.

Aproximava-se o momento da volta para casa, mas a tarefa parecia impossível. O navio com a delegação partiu de madrugada e teve de retornar pela manhã a São Luís. "O radar acusara a presença de submarinos no mar", escreveu Aragão, lembrando que, além da maior epopeia humana, estava em andamento uma guerra mundial.

A solução foi partir por via férrea até Teresina. É quase inacreditável, mas o trem descarrilou em duas ocasiões, sem feridos. Uma vez no Piauí, por que não jogar bola? Vitória por 4 a 3 sobre a seleção local.

As duas pernas finais da saga –Teresina-Fortaleza e Fortaleza-Recife– foram feitas por rodovia. No último jogo da excursão, o Santa Cruz bateu o Ceará por 3 a 2.

Foram quase quatro meses até que os jogadores estivessem, enfim, em casa. "Meu filho Marcelo, de seis anos, não me reconheceu", contou Guaberinha.

Era o fim de uma excursão histórica e mesmo incrível, que teve ainda ordem de prisão a um atleta, Pedrinho, por supostamente "ter feito mal a uma menina de 17 anos" e episódios como este, em Teresina, narrado por Luiz Antonio Simas: "Um jogador foi esfaqueado após uma confusão na zona do meretrício".

Segundo o historiador, toda a saga "deveria virar série de algum streaming". "Estão marcando bobeira de não produzir", advertiu.

"Que me desculpem Alexandre, Gengis Khan, Napoleão, Cristóvão Colombo e outros mais. Perto da epopeia do Santa Cruz na Amazônia, seus grandes feitos guardam a mesma dramaticidade de um piquenique na Ilha de Paquetá, com direito a passeio de pedalinho nas águas da Guanabara."

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