'Não Dá Mais', milionários, crianças e apostadores se misturam na F1 do turfe

Jockey Club tenta diversificar público e cria atrações para corrida de cavalos mais importante de São Paulo

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São Paulo

Barba longa, óculos pendurados na camisa e caneta na mão, Joaquim Carvalho, 83, anota pequenos números ao lado de nomes inusitados de cavalos. Há o "Pingos nos Is" e o "Qual é". Não parece, mas faz cálculos de probabilidades.

"Se eu fosse você, apostaria no Não Dá Mais", aconselha.

A poucos metros, Eduardo, 59, discorda. Ele não quer falar o próprio o sobrenome porque sua mulher não pode saber que está naquele lugar no domingo à tarde.

"O favorito é Maximum Drive. Mas Doutor Sureño é boa opção", acredita.

Público assiste a uma das provas deste domingo (7) no Jockey Club de São Paulo
Público assiste a uma das provas de domingo no Jockey Club de SP - Karime Xavier/Folhapress

Sentados à sombra, eles estão alheios à preocupação de Bianca Jorge Schneider, 42. Ela queria levar a filha Maria Antonella, 5, para ver "O Show da Luna", mas perdeu a hora. São 20 quilômetros de sua casa, no bairro do Limão, zona norte, à Cidade Jardim, na parte sul da capital. Passou a tarde, no sol, a correr atrás da menina entre um brinquedo e outro.

A desempregada, que afirma ser capaz de fazer qualquer trabalho que apareça, nem viu quando três mulheres usando chapéus com penas de aves passaram perto dela. Vinham do setor de camarote, onde o terno e a gravata são obrigatórios para eles, e o vestido, para elas.

Ao mesmo tempo em que continua apegado às suas tradições de 148 anos, o Jockey Club de São Paulo, entidade que é dona do Hipódromo de Cidade Jardim, quer mudar. A ideia é usar seus 586 mil metros quadrados de terreno para atrair um público não necessariamente interessado na especialidade da casa: o turfe. A corrida de cavalos.

As provas são chamarizes. No último domingo (7), foi realizada a centésima edição do Grande Prêmio São Paulo, o evento mais importante do esporte no estado. A administração do Jockey calcula que 15 mil pessoas tenham passado pelo local a partir de sexta-feira (5). Para o clube, é a F1 do turfe.

A entidade espalhou brinquedos gratuitos para crianças, convidou participantes de projeto social em Heliópolis a conhecer a estrutura, instalou quiosques para venda de bebidas e comidas e tornou uma parte do seu terreno algo parecido a um parque de diversões.

Era essa a atração para Bianca e Maria Antonella, que jamais haviam visto uma corrida de cavalos antes.

"É bonito, mas cansativo. Tudo tem fila, e é muita gente. Gostei de vir mesmo assim. Só não sei se viria de novo. É longe, não é? Antonella! Não atravessa isso, menina!", diz, antes de se desesperar com a liberdade da filha e sair correndo para evitar que se machuque.

"É um desafio de comunicação mostrar que há serviços para atendermos ao público em geral. Existe carência de passatempos, e o Jockey pode oferecer isso. Temos a restauração de áreas tombadas que podem ser vistas pelos visitantes. É algo que foi feito no Museu do Ipiranga, na Pinacoteca… Não há nada assim na América Latina", afirma José Carlos Pires, diretor executivo do clube.

O Jockey vive uma disputa com a Prefeitura de São Paulo, que cobra cerca de R$ 315 milhões (reajustados até o final do ano passado) de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) não pagos. Um projeto de lei foi aprovado na Câmara Municipal, em dezembro, para desapropriar o terreno e transformá-lo em um parque público que seria, na cidade, menor apenas do que o Ibirapuera.

O clube briga na Justiça contra a cobrança da dívida. Diz que ela é indevida por não existir isonomia em sua cobrança (em relação a outras estruturas da capital). Também afirma desempenhar papel de parque, já que o espaço é aberto para a população.

Os momentos de maior atração para quem visitava o complexo nem eram as provas em si. Os cavalos passavam com muita velocidade. Valia mais quando atravessavam a pista antes da corrida, em trotes lentos. Podiam ser fotografados e vistos de perto.

"Antes das filhas, a gente vinha para cá. É um reencontro. Acho que fazia dez anos que não entrávamos no Jockey. Valeu para trazer as crianças para brincar, ver como é, e também para mostrar a elas como se aposta", diz o engenheiro Eduardo Zambelli, ao lado da mulher Juliana. Estavam acompanhados das meninas Luiza, 8, e Isabela, 5.

Apostar é a parte mais importante para a velha guarda. É a geração que desfila com revistas debaixo do braço. As páginas contêm descrições dos páreos do dia. Os membros dessa velha guarda saem das tribunas apenas para colocar dinheiro em cavalos que, têm fé, vão vencer. Dá mais errado do que certo.

"Meu irmão ganhou muito dinheiro aqui. Tem jóquei que dá uns toques sobre cavalos que estão bem, mas antes era mais comum. Já ganhei R$ 20 mil. Hoje em dia só me ferro. Perdi R$ 100 ontem [sábado]. A graça é perder dinheiro porque, como fonte de receita, acabou. Antes se ganhava dinheiro de verdade. Hoje em dia, não mais", reconhece Gilberto Oliveira, 64.

"Mudou tudo. Quando comecei a vir, há 30 anos, tudo era de graça. Hoje o pastel custa R$ 10", reclama.

Dinheiro mesmo está nos espaços exclusivos. Ali estão os donos de cavalos, atividade que exige um investimento que pode chegar a R$ 300 mil apenas para comprar o animal, embora o valor seja variável. Há a necessidade de manter uma equipe para mantê-lo. Treinador, veterinário, cavalariço. E é necessário cuidar da alimentação, quase sempre uma mistura de alfafa com ração.

O jóquei Marcos Ribeiro comemora a vitória no GP São Paulo, montando o cavalo Doutor Sureño
Marcos Ribeiro, montando o cavalo Doutor Sureño, celebra vitória - Karime Xavier/Folhapress

É naquele espaço que se discutem as condições de cada competidor no GP São Paulo. Fala-se da linhagem do animal. Lembra-se que Não Dá Mais, um dos possíveis vencedores, veio da Inglaterra apenas para a corrida deste domingo, mas "vem de problemas físicos". Comenta-se sobre os jóqueis.

Por volta das 16h45, o cardiologista Enio Buffolo e seu irmão, o advogado Ernani Buffolo, estão comemorando uma vitória que não obtinham havia 30 anos. O cavalo deles, que disputa provas pelo Haras Moema, Doutor Sureño, venceu o GP São Paulo. O prêmio é de R$ 100 mil.

"Ele [o animal] está se preparando há três anos para esta prova. Eu não sei como é ter filho. Mas deve ser emoção parecida", compara Ernani Buffolo.

Quase às lágrimas, o jóquei Marcos Ribeiro, 30, não consegue articular o que sente. É a primeira vez que ganha o Grande Prêmio. Abraça a mulher e filhos. É cumprimentado por treinadores de outros animais e por concorrentes, todos com a altura parecida com a dele, 1,63 m. Não dá para montar cavalos de corrida se a pessoa é alta demais.

Terminada a prova mais importante do turfe estadual, começa o desfile de carros importados na entrada do clube pela avenida Lineu de Paula Machado. Também há os que esperam, celular na mão, carro de aplicativo. Bianca, ao lado de Antonella, já no meio tarde, planeja o caminho de volta até a zona norte.

"Amanhã [segunda] é dia de procurar emprego."

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