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Mulheres lutam contra histórico de negligência da ciência esportiva

Maioria das pesquisas é feita por homens e para eles; ex-remadora é uma das que tentam mudar essa realidade

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Londres

Quando Baz Moffat era remadora profissional, a busca pela performance era uma fixação.

"Todos eram obcecados pelo material perfeito no cobertor para uma ótima noite de sono, ingerir proteína imediatamente depois de sair da água," disse à Folha a inglesa, que fez parte da equipe britânica entre 2005 e 2008.

Mas havia um problema.

"Enquanto isso, meninas que remavam comigo ficavam doentes dois dias por mês, lesionavam as costas, usavam três tops porque os delas não cabiam," disse. "Saúde feminina era algo privado, falava-se com o médico, nunca no mundo do esporte."

Depois da aposentadoria, continuou sem respostas.

"Fiz mestrado, estudei ciência do esporte, fui personal trainer, trabalhei em times de elite, ninguém falou comigo sobre saúde feminina. Como todo o mundo ignorava isso?"

A ex-remadora britânica Baz Moffat, que estuda a saúde da mulher
Baz Moffat espera ajudar mulheres a se educar sobre o próprio corpo - Divulgação

Em 2020, ela decidiu criar o The Well-HQ, plataforma de negócios para educar mulheres e técnicos sobre a saúde feminina, abordando temas como treinos, nutrição, menstruação e menopausa. Juntaram-se a ela Emma Ross, PhD em fisiologia do exercício pela Universidade de Brunel, e a médica Bella Smith.

Em maio, elas lançaram "The Female Body Bible" ("A Bíblia do Corpo Feminino"). O livro entrou para a lista dos mais vendidos do jornal britânico The Sunday Times.

"Não é certo uma mulher precisar ler um livro para aprender sobre o próprio corpo, mas queríamos algo confiável, com evidências cientificas, fácil de ler, porque parecemos estar no Velho Oeste em termos de educação para mulheres," disse Moffat.

O livro traz um dado alarmante: em 2020, apenas 6% de toda a pesquisa mundial em ciência do esporte foi feita exclusivamente em mulheres. Em 2023, o número subiu para 8%.

"Mesmo estes 6% têm qualidade ruim, pouco é utilizável," disse. "E o mundo científico é tendencioso, quem tem o orçamento são os homens."

A ciência está negligenciando as mulheres, e falta representatividade. Segundo estatísticas da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), menos de 30% das pesquisadoras ao redor do mundo são do sexo feminino. Para piorar, estudá-las é complexo.

"Mulheres têm o ciclo hormonal diário, o menstrual, e metade delas no Reino Unido toma anticoncepcionais. Não dá para simplesmente chamar uma mulher na rua e fazer uma pesquisa. Aí você precisa de mais mulheres, alinhar o ciclo dela com seu experimento," disse Moffat. "Diziam-me na universidade: ‘Vamos estudar os homens.’ É quase algo cultural."

"E mulheres não se voluntariam para pesquisas porque tradicionalmente fomos deixadas de fora de estudos durante nossos anos férteis. É preciso mudar a mentalidade."

Um artigo do jornal científico Sports Medicine publicado neste ano mostrou que corredores de ultramaratona homens e mulheres são diferentes em relação a performance, fadiga e propensão a lesões. Um estudo de 2017 sobre concussão do British Journal of Sports Medicine (BJSM) apontou que mulheres têm mais sintomas, e mais graves: 34% dos homens pesquisados concluíram o tratamento em dois meses, contra 12% das mulheres, e 35% delas tinham queixas seis meses depois. Um editorial do BJSM mostra a disparidade de gênero em pesquisas esportivas e a importância de resolver o problema.

Antes da Copa do Mundo de futebol feminino, realizada entre julho e agosto na Austrália e Nova Zelândia, a lista de jogadoras com lesões de ligamento cruzado anterior do joelho levantou o debate sobre a necessidade de mais estudos.

Beth Mead foi uma das atletas que sofreu lesão séria no joelho - Franck Fife - 31.jul.22/AFP

Uma pesquisa da Associação Europeia de Clubes liderada por especialistas da St. Mary’s University, em Londres, divulgada em junho, mostrou que 82% das 350 jogadoras de futebol entrevistadas sentem desconforto regular ao usar chuteiras. E 20% admitiram improvisam palmilhas ou furam o calçado, já que o modelo da maioria das chuteiras é baseado em pés de homens brancos.

Por anos, mulheres confiam em planos de treinos, nutrição, tratamentos de lesões baseados em estudos feitos em homens. Estamos nos cuidando de forma errada?

"Não estamos dizendo que tudo o que foi feito para homens é irrelevante para mulheres. Mas, para o público em geral, não estamos criando espaços para que se sintam confortáveis. Nada desestimula quem ama esporte, mas há um grupo que não gosta por estar acima do peso, não ter confiança, aparece uma vez e não volta. É também elas que precisam do nosso foco," disse Moffat. "Meninas fazem menos exercícios que meninos desde os cinco anos de idade. Quando nos exercitamos, nós nos lesionamos mais do que homens, e de forma mais séria."

Há boas práticas pontuais. O time feminino do Chelsea e a seleção feminina da Inglaterra monitoram o ciclo menstrual das jogadoras. O Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos exige que os pesquisadores que financia considerem o gênero como uma variável em análises.

O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, afirmou que mulheres "trazem diversidade às pesquisas e novas perspectivas à ciência e à tecnologia". Cientistas do sexo feminino têm mais probabilidade de incluir outras mulheres em estudos.

Para Moffat, não bastam dados. É preciso ampliar o debate.

"Um estudo do Royal College of Obstetricians and Gynaecologists no Reino Unido mostra que mulheres não são educadas sobre o próprio corpo. Não sabemos como exercitar o assoalho pélvico, gerenciar sintomas no ciclo menstrual e na menopausa, ficar grávidas, ter o bebê e nos recuperar."

"Vou a escolas e falo com meninas de 10, 11 anos sobre seios, menstruação. Elas cobrem ouvidos e olhos, não tocam na calcinha menstrual que levo. Digo a elas: ‘Se não posso falar com vocês sobre isso, qual a chance de saberem se comunicar quando não tiverem certeza das coisas?’. Há mulheres que nunca pronunciaram essas palavras, como vão conversar com treinadores, maridos, chefes? Precisamos continuar a falar sobre isso."

É consenso no mundo científico que mulheres se beneficiariam de orientações específicas para elas em temas como treinos e lesões. Moffat está otimista.

"Mulheres estão fazendo coisas extraordinárias, atletas e mulheres em geral," disse. "A atitude vai ter que mudar, porque essa enorme disparidade de gênero já foi reconhecida e precisa ser enfrentada."

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